A bagunça na PM paulista
Ex-capitão do Exército, Tarcísio de Freitas sabe que nada ameaça mais uma instituição militar do que a ausência de disciplina. É quando, diante da complacência ou incentivo de seus comandantes, integrantes de uma corporação deixam de lado a hieraquia.
O vídeo em que youtuber americano acompanha operações dentro de carros da PM, empunha arma e usa colete da corporação comprova que o governo paulista conseguiu bagunçar a instituição. Nada surpreendente: quem tem autorização para matar faz o que quer.
Na gravação, um PM diz que mortes de bandidos são comemoradas com charutos e cervejas. Um agente de segurança que fala isso, ainda mais para alguém que acabara de conhecer, tem absoluta consciência de sua impunidade. Mais, conta com a cumplicidade de seus superiores.
Ex-capitão do Exército, Freitas sabe que nada ameaça mais uma instituição militar do que a ausência de disciplina. É quando, diante da complacência ou incentivo de seus comandantes, integrantes de uma corporação deixam de lado a hieraquia.
No caso da PM, é preciso reconhecer que a matança nas ruas não parece desrespeitar ordens superiores, o governo exibiu com orgulho as 28 mortes da Operação Escudo e as 56 da Operação Verão, ambas no litoral do estado. Segundo dados publicados pelo portal G1, no primeiro trimestre deste ano as mortes cometidas por PMs paulistas subiram 86%.
Mas, como já declarou, Freitas considera que seus comandados estão fazendo o certo: "Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí", afirmou.
Não é preciso ir tão longe, basta ver as imagens veiculadas pelo youtuber Gen Kimura. Operações policiais em favelas foram transformadas em show, em motivos de riso, de gargalhadas. É como se o americano e seu assistente estivessem num parque de diversões, numa montanha russa.
O vídeo é motivo de vergonha para todos nós, revela a degradação da sociedade e de seu aparelho policial, o desrespeito à farda, à vida — à vida também dos agentes vítimas de uma guerra insana que, insisto, existe porque só mata pobres, inclusive policiais.
Procurada pela Folha, a Secretaria de Segurança seguiu o roteiro de sempre: manifestou indignação com o vídeo, disse que comemorar mortes "não condiz com as práticas adotadas pelas forças de segurança do Estado", anunciou que pediu esclarecimentos à PM, que vai apurar o que houve.
Uma investigação séria deveria começar no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Tarcísio de Freitas deveria ser o primeiro ser ouvido, caberia a ele — repito, um cidadão com formação militar — explicar como, na prática, estimulou tantos desvios.
O vídeo feito pelo youtuber revela que ele não pegou carona numa patrulha da esquina, que usou sua lábia para que policiais de baixa patente autorizassem a gravação. O material mostra entrevistas com oficiais do 18o Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, deixa claro que tudo foi consentido.
O fato de oficiais permitirem que civis acompanhassem operações em carro oficial já absurdo, até pelo risco envolvido. Mais grave ainda é a permissão para que o americano pudesse manusear uma arma da PM, aparentemente um fuzil. O tom jocoso que marca boa parte do vídeo apenas ressalta o tamanho do erro, a dimensão do equívoco que vem sendo cometido a partir de gestos e falas do governador.
Ex-ministro de Jair Bolsonaro, Freitas acompanhou de perto as consequências da falta de disciplina em quartéis. A partidarização de comandantes das forças militares e a liberdade com que oficiais da ativa passaram a conspirar e a fazer publicações em redes sociais são exemplos do caos estimulado pelo então presidente — homem que foi obrigado a deixar o Exército, que por diversas vezes desafiou seus superiores hierárquicos e que foi chamado de "mau militar", pelo ex-presidente Ernesto Geisel, um general. Agora, a bagunça chegou à PM.