Muita gente diz que sua vida daria um livro — e tem razão. Todas as vidas são capazes de gerar um ou mais livros, depende do jeito de escrever uma história, de transformar fatos, retumbantes ou aparentemente banais, em literatura.
Na entrevista publicada quinta-feira em O Globo, a escritora Tatiana Salem Levy tratou do tema ao falar de seu novo livro, "Melhor não contar" (Todavia), que aborda o assédio que, a partir dos 10 anos, sofreu do padrastro.
Ressaltou que escrever a partir de vivências particulares é algo bem diferente de contar uma história num bar: "É transformar em outra coisa que, pra mim, é literatura. Tirar de mim e virar outra coisa. Sou eu, mas não sou", declarou.
Citou que livros não dependem de grandes façanhas: a saga de Ulisses, herói da "Epopeia", é fantástica, exemplificou, mas os dez anos em que Penélope esperou pela volta do marido não podem ser descartados: "Somos constituídos de pequenas histórias", destacou.
Qualquer vida é singular. Ao longo de décadas, acumulamos experiências particulares, incomparáveis, diferenciadas: um mesmo fato não é vivido da mesma forma por duas pessoas.
Literatura não é notícia de jornal, não é movida por novidades, por episódios que, de cara, apresentam-se como relevantes; não precisa de conquistas, campeonatos, recordes, medalhas de ouro.
A vida de cada um de nós vai muito além dos currículos profissionais, de carreira acadêmica, de dias marcantes como casamento, nascimento de filhos, separação, morte de parente ou amigo.
Nossa memória guarda sabores, sensações, sentimentos e cheiros; um beijo, um gesto, um tropeço, uma decepção, uma risada específica, algum deslumbramento. Fatos que não são notícia, mas que têm papel decisivo em nossas vidas e que, colocados no papel, ganham outro viés, até mesmo em relação ao autor: publicado, ganha independência, o personagem se descola do autor.
Grandes romances são, com frequência, escorados em detalhes cotidianos que, nas páginas, revelam-se surpreendentes, como em "Memórias póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis. Isso está presente em livros de autores como Antônio Torres, Carlos Heitor Cony, Michel Laub, Maria Fernanda Elias Maglio, Marcelo Moutinho, Alê Motta, para citar apenas brasileiros.
A força de "Quarto de despejo", de Carolina Maria de Jesus, está, principalmente, na enumeração de fatos comuns à vida de uma moradora de favela. Reunidos em forma de diário, ganham a força de um romance: "Estou sem ação com a vida", "Como é terrível levantar de manhã e não ter nada para comer".
A última frase do livro é impactante, carregada de força literária. Não por representar uma surpresa, uma virada no enredo, mas por fazer ecoar o que, na escrita, ganha outra dimensão, reforça a dor e a falta de perspectivas, dá uma nova dimensão ao drama: "Levantei as 5 horas e fui carregar água."