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Brigas nas minhas estantes

Rivais, Vargas Llosa e García Márquez convivem na mesma prateleira | Foto: FM

Um lugar-comum atribui a bibliotecas a aura de ambientes tranquilos, silenciosos, que convidam à reflexão. Faz sentido, mas prefiro vê-las como locais tensos, onde diferentes e mesmo contraditórias versões do mundo são apresentadas, geram conversas, riso, choro, ódio, amor, divergências e, mesmo, brigas.

Desorganizado desde sempre, procuro manter alguma ordem nos livros; separá-los em grandes grupos: ficção (brasileira de um lado; estrangeira de outro), história, jornalismo, música e artes de um modo geral, ciências sociais, Rio de Janeiro.

Principalmente no caso de ficção brasileira, tento manter uma ordem alfabética, atropelada quase sempre que compro ou ganho um novo volume — os autores passam muito aperto em prateleiras que não são esticáveis.

No caso da literatura estrangeira, utilizo mais um critério geográfico, relacionado à origem de cada escritor/escritora. Aqui os americanos, ali os franceses e os portugueses, os argentinos e  outros de língua espanhola. E é nesse espaço da estante principal que, livre da amarração alfabética, posso provocar algumas altercações.

Aqui em casa, os grandes romancistas portugueses José Saramago e António Lobo Antunes são obrigados a conviver lado a lado. Seus livros estão numa mesma prateleira, grudadinhos. Rivais na disputa de prestígio, leitores e do Nobel — concedido ao primeiro — têm que se aturar.

Às vezes, chego a ouvir alguma acalorada discussão entre eles, o delicioso sotaque lusitano chega a ultrapassar as barreiras de meu escritório. É bem divertido — só pra se ter uma ideia, Antunes já declarou que Saramago é uma... merda. Na Flip de 2009, para a alegria do escritor, o mediador de sua conversa chegou a classificar o Nobel para o rival de "erro de português". 

O idioma em comum permitiu que eu juntasse os livros de outros vencedores do Nobel, o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Márquez. Aqui, a parada é mais séria, os dois, protagonistas do boom de litertura latino-americana dos anos 1970, chegaram às vias de fato naquela mesma década: num cinema mexicano, Llosa nocauteou o colega com um soco.

Os motivos da briga nunca ficaram claros, há quem fale num arrastar de asa do colombiano para a Patricia, com quem o peruano era casado; outros dizem que o problema é que o Gabo e a mulher, Mercedes, teriam aconselhado a moça a largar o maridão. As divergências ideológicas entre os dois — Llosa já caminhava para a direita — também são citadas para justificar a peleja.

Não tenho nada a ver com isso. Mais do que uma provocação, procurei, ao forjar as vizinhanças incômodas, ressaltar que não cabe à literatura apontar soluções, mas provocar dúvidas, conflitos, questionamentos. Não há verdades absolutas, mas diferentes formas de escrever e de ler as diferentes realidades que nos cercam.