Javier Milei e os conselhos caninos
Os xingamentos apenas demonstram a incapacidade do político de extrema direita de resolver problemas muito sérios por lá. Não é com bravatas que ele vai conseguir resolver o problemaço que herdou e que jurou equacionar.
A nova rodada de ofensas de Javier Milei a Lula indica que ele, como já declarou algumas vezes, conversa mesmo com seu finado e clonado cão, Conan, e que este lhe sopra alguns conselhos. Só um quadrúpede — com o número regulamentar de patas e não com as 28 alardeadas por Nelson Rodrigues — diria para o presidente comprar brigas pessoais com o governante do maior parceiro comercial de seu pra lá de quebrado país.
Os xingamentos apenas demonstram a incapacidade do político de extrema direita de resolver questões muito sérias. Diante das dificuldades, recorre ao conhecido método de desancar os alvos de sempre: por algum tempo, o destempero ocupa espaços na imprensa e redes sociais que assim deixam de tratar do aperto argentino.
Milei tem o direito de discordar de Lula, de criticar a esquerda, mas, em respeito ao seu próprio povo, deveria adotar uma postura minimamente responsável. O grau de dependência de seu país não recomenda que ele parta assim pra briga. A compra emergencial de gás feita no fim de maio junto à Petrobras mostra que deveria evitar esse tipo de problema. Não fosse o socorro brasileiro, Miliei, seus cachorros e todos os argentinos não teriam como se aquecer no início do inverno.
Sua anunciada presença, neste fim de semana, num encontro de radicais de direita em Balneário Camboriú (SC) reforça que ele, como presidente, atua como chefe de torcida organizada, joga para provocar. A reunião, que terá a presença de Jair Bolsonaro, serviu de pretexto para que Milei deixasse de comparecer à próxima cúpula de chefes de Estado do Mercosul.
Ídolo máximo da direita, Donald Trump ensinou o caminho do destempero; na Casa Branca, chutou baldes de todos os tamanhos, nunca agiu de forma diplomática, mentia de forma compulsiva — mas ele era presidente dos Estados Unidos, da mais rica e poderosa das nações, tinha — para ficarmos no exemplo canino — um lugar de latido muito mais destacado do que o de Milei.
O argentino tem apresentado números que indicariam uma melhora na situação do país, como desaceleração da inflação e uma tendência de melhoria das contas. O problema é que isso tem sido obtido com um corte radical nos investimentos estatais e com um arrocho pesado à população, que teve seu já comprometido poder de compra devastado nesses primeiros meses de Milei: taxa de pobreza por lá chegou a 50% da população.
É só imaginar como seria ficar sem reajustes salariais num país que, prevê o FMI, deverá ter este ano uma inflação de 233% e uma queda de 3,5% no Produto Interno Bruto. A situação é tão preocupante que o FMI — não uma dessas organizações acusadas de ser de esquerda — teme que a recessão argentina alimente tensões sociais.
Milei sabe o risco que corre. O caos gerado pelos fracassos de sucessivos governos fez com ele recebesse uma generosa carta de crédito por parte do eleitor, uma espécie de cheque quase em branco — se os outros não conseguiram encontrar um caminho, por que não dar uma chance a esse descabelado que fala com cachorros?
O problema é que esse tipo de concessão não é infinito, ainda mais num país de forte participação popular na política, que não vacila em levar bumbos para o meio das ruas assombradas pelo espírito de Juan Domingo Perón. Não é acenando com o fantasma comunista que Milei vai exorcizar o ectoplasma peronista nem mudar o viés crítico de seu povo.
Os argentinos que se tratem de seu presidente e de seu país, mas não custa esperar que o homem que tanto ama os cães saiba o momento de baixar a bola. E vale lembrar que esse negócio de provocar cachorro grande costuma não dar certo: como escreveram Aldir Blanc e João Bosco, quando o pastor late forte, o bassê faz piu-piu.