Escândalos mequetrefes
Em maior ou menor grau, a espoliação do patrimônio público é uma constante na nossa história, desenvolveu-se uma espécie de convicção de que aquilo que, em tese, é de todos, não pertence a ninguém.
Os detalhes dos casos das joias apropriadas por Jair Bolsonaro formam um conjunto com outras investigações associadas à sua família, como as rachadinhas, o suposto tráfico de influência de Jair Renan (o 04) e o pagamento, com verbas oficiais, dos caseiros de Angra dos Reis (RJ).
Independentemente de futuras decisões judiciais, é possível ver uma espécie de concertação de possíveis delitos mequetrefes, ainda que muito lucrativos. Todos baseados numa raspagem do tacho do Estado; como convidados que, na encolha, levam salgadinhos e uma garrafa de uísque da festa.
Há muitos anos, um político que ocupou importantes cargos na ditadura me disse que resolvera assumir a paternidade da filha de uma empregada. Ele nunca tivera relação amorosa com a mãe, não era pai biológico da menina, mas queria que ela herdasse sua generosa pensão militar: "Vou deixar isso pro governo?", perguntou.
Uma lógica até popular num país formado a partir da invasão de uma potência estrangeira interessada em espoliar riquezas. Durante uns três séculos, o Brasil não passou de uma gigantesca fazenda que prosperava graças ao trabalho de escravizados. É mais do que razoável que boa parte da população veja o Estado com muita desconfiança e considere justo tirar umas lasquinhas dessa mãe pouco gentil.
Em maior ou menor grau, a espoliação do patrimônio público é uma constante na nossa história, desenvolveu-se uma espécie de convicção de que aquilo que é de todos não pertence a ninguém.
O não pagamento de impostos entra na lista do que pode ser feito, como ensinou o então deputado Bolsonaro em 1999: "Conselho meu e eu faço: eu sonego tudo que for possível. Se puder, não pago (imposto) porque o dinheiro vai pro ralo, pra sacanagem".
A transformação de cargos públicos em fonte de renda particular é algo bem popular nos parlamentos brasileiros. O mecanismo é simples: ao invés de preencher as vagas com assessores capazes de realizar estudos e de propor políticas públicas, políticos nomeiam aspones e ficam com a maior parte de seus salários: como os indicados não trabalham, o que sobra pra eles é visto como lucro.
Em seu livro "O negócio do Jair", a repórter Juliana Dal Piva mostrou que o esquema de rachadinhas é algo tão antigo na vida política da família Bolsonaro como a defesa da ditadura, dos interesses corporativos dos militares e da violência policial. Algo que se iniciou com o patriarca logo em seus primeiros mandatos.
O bolsonarismo é uma espécie de consequência tardia de uma trajetória política iniciada meio por acaso pelo capitão indisciplinado que foi convidado a deixar o Exército. Nem ele poderia imaginar que, em poucas décadas, deixaria o papel de figurante caricatural do baixo clero da Câmara para, graças a uma improvável combinação de fatos, transformar-se em porta-voz de uma corrente política e virar presidente do país.
Mas o aumento de sua relevância não o fez abandonar suas, digamos, raízes. A camelotagem de joias por ele recebidas em nome do Estado brasileiro e a designação de oficiais das Forças Armadas para atuarem como mascates revelam sua visão distorcida do papel de um presidente.
Os atos reforçam a observação feita em sua ficha, em 1983, pelo coronel Carlos Alberto Pellegrino, que, como contou o repórter Luiz Maklouf de Carvalho em "O cadete e o capitão" (Todavia), condenou a participação de seu subordinado, durante as férias, num empreendimento ligado à extração de ouro: "Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente". Selva!