O chavismo de Bolsonaro

Chávez e Nicolás Maduro, porém, conseguiram estruturar um regime autoritário muito parecido com o sonhado por Bolsonaro

Por Fernando Molica

Uma mudança política na Venezuela é bastante difícil

No poder há um quarto de século, o chavismo, é, neste aspecto, um bolsonarismo que deu certo. Não foi à toa que o então deputado Jair Bolsonaro derretia-se em elogios a Hugo Chávez (1954-2013), um ex-tenente-coronel que montou um regime baseado no apoio quase irrestrito dos militares. Praticamente todo o oficialato foi cooptado pelo governo.

Os processos que levaram Chávez e Bolsonaro ao poder são bem diferentes, o venezuelano encarnou um rompimento com elites conservadoras que chegaram a, em 2002, botar na rua um golpe de Estado que lhes sairia pela culatra. O alinhamento à esquerda e o bolivarianismo são contraditórios com a visão de mundo do ex-presidente brasileiro.

Chávez e o atual presidente, Nicolás Maduro, porém, conseguiram estruturar um regime autoritário muito parecido com o sonhado por Bolsonaro. Até para compensar a força dos adversários, não vacilaram ao impor uma profunda militarização de seus governos. Além da PDVSA, a estatal petroleira, todos os principais cargos foram entregues a fardados, que chegaram, em 2013, a ganhar um banco: Banco de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana.

Perto do que foi feito na Venezuela, a entrega de cargos a militares feita por aqui durante o mandato de Bolsonaro foi tímida: no nosso vizinho houve uma proliferação de Pazuellos.

Em 2019, quando passei uma semana em Caracas a trabalho, todo o sistema de abastecimento era controlado por militares. Um poder imenso num país que já sofria com a indisponibilidade de produtos de um modo geral, em particular, de remédios e de alimentos (já então não era permitido fazer fotos dentro de supermercados, repletos de prateleiras vazias).

A situação era caricatural: um general controlava o arroz; outros cuidavam de carnes, massas e, acredite, do papel higiênico. Um sistema verticalizado que favorecia a corrupção e os sistemas clandestinos de distribuição de comida.

A militarização da vida nacional é tamanha que as forças armadas de lá são compostas por cinco instituições: Exército, Marinha, Aeronáutica e mais a Guarda Nacional Bolivariana e a Milícia Bolivariana, esta, constituída por quatro milhões de homens e mulheres. Por lá, ser um miliciano é algo previsto pela Constituição desde 2020 — outra diferença em relação ao Brasil.

Mais do que um Estado policial, o chavismo construiu um Estado militarizado — uma ameaça ao governo constituído e que agora tenta se manter no poder representa um risco para os agraciados ao longo de 25 anos, em particular, os fardados.

Nenhum governo ou regime se mantém eternamente ancorado apenas na força e na distribuição de privilégios. O chavismo é fruto de um processo de exclusão criado e mantido por um elite tradicional, autoritária e, um século, entorpecida pelos vapores que emanam das gigantescas reservas de petróleo. 

Como se tornou quase um padrão em países produtores de petróleo, por lá foi construída uma sociedade muito desigual, marcada por abismos entre classes sociais. O uso do dinheiro que jorrava do subsolo para programas sociais foi uma marca de Chávez em seus primeiros anos, o que lhe garantiu popularidade e confiança para avançar num processo de abocanhar mais e mais poderes — atitudes que atropelaram instituições venezuelanas, alimentaram sonhos autoritários de muita gente. 

Dois dias depois de Chávez instalar a Assembleia Constituinte que suspendia o funcionamento do Congresso e mudava a estrutura judicial, Bolsonaro leu na Câmara cartas de leitores do jornal "O Globo". Numa delas, seu autor elogiava o venezuelano, já que, segundo ele, o povo  não suportava mais "a omissão, a ineficiência e a corrupção" que havia nos dois poderes. Por lá, o golpe deu certo; por aqui, ufa, não.