A imagem da bandeira brasileira hasteada na embaixada argentina em Caracas é uma prova de maturidade e de profissionalismo da diplomacia dos dois países e ressalta a grosseria e infantilidade do presidente Javier Milei, que não perde a chance de ofender Lula. Ao agradecer ao Brasil pelo gesto de tomar conta da lojinha, ele passou recibo do erro que faz ao tratar política como se fosse programa de auditório.
A existência de divergências ideológicas é normal e, mesmo, necessária. É bom que o mundo não seja refém de um pensamento único. Na primeira metade do século 20, o medo do avanço do comunismo fez com que países capitalistas fizessem importantes concessões aos trabalhadores, que se concretizaram na social-democracia. O liberalismo e a pluralidade nas democracias ocidentais serviu para pressionar e questionar o autoritarismo e a repressão que havia na União Soviética e em outros países socialistas.
Mas, de um tempo pra cá, inspiradas no exemplo de Donald Trump, lideranças — principalmente da extrema direita — passaram a investir no histrionismo. O discurso político passou a perder espaço para uma lógica religiosa, de luta do bem contra o mal; adversários passaram a ser considerados inimigos, da humanidade e de Deus.
Como não admitir negociar com o que considera encarnação do capeta, o viés salvacionista e radical se espalhou por aí. Este tipo de lógica não admite gradações, o reconhecimento de alguma qualidade em quem está do outro lado: para fortalecer a luta contra o Coisa Ruim, palanques passaram a ser ocupados por performances inspiradas na atuação de pastores exorcistas.
Mais até do que Jair Bolsonaro — um ator de grande capacidade de comunicação, mas de pouco repertório cênico —, Milei é fruto desse exibicionismo violento e irresponsável. E tome de motosserras (a versão argentina da arminha), de uso de fantasia de um tal super-herói libertário, de divulgação de conversas com cachorros.
Foi nesse contexto que ele se viu impelido a partir pra briga com o presidente brasileiro, gesto incompatível com as relações internacionais, ainda mais no caso de países vizinhos que têm um importante fluxo comercial. Este tipo de político precisa do confronto, necessita gerar paixões, ódios: move-se mais pelos supostos pecados alheios do que por suas qualidades. Qualquer conciliação seria vista por seus adoradores como uma concessão àquele que não pode ser admitido.
No fim de junho, às vésperas de vir ao Brasil, Milei cometeu a descortesia de chamar Lula de corrupto, um sinal para animar a plateia que participaria de um evento conservador em Santa Catarina. Mas a história é cheia de armadilhas e gosta de pregar peças, principalmente nos que desdenham de seu poder.
Pouco mais de um mês depois, o governo argentino se viu obrigado a pedir ajuda ao Brasil para resolver o problema em sua embaixada em Caracas depois que o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, rompeu as relações entre os dois países. Uma situação ainda mais delicada pelo fato da representação diplomática abrigar adversários do regime chavista.
Os diplomatas trabalharam, o Brasil segurou a onda, hasteou sua bandeira em território até então controlado pela Argentina. E Milei se viu obrigado a ir a público agradecer "enormemente" a atitude brasileira — não pode ser descartada a possibilidade de que seu gesto tenha sido negociado entre os ministérios de relações exteriores dos dois países.
A política é atividade humana, depende de atitudes firmes, mas também de negociações. Milei tem o direito de defender o liberalismo econômico, de praguejar contra o tamanho do Estado argentino, de criticar atitudes do governo brasileiro. Mas tudo isso pode ser feito com equilíbrio, com educação — até porque ninguém está livre de ter que pedir favor.