Por: Fernando Molica

Carrilhões na noite portenha

O compositor e violonista João Pernambuco | Foto: Reprodução

Acredite: há duas semanas, ouvi um violonista de rua tocar, numa noite fria de Buenos Aires, o belíssimo choro "Sons de carrilhões", de João Pernambuco (1883-1947). Isso, bem ao lado do Teatro Colón.

Não faz muito tempo que escrevi aqui sobre o susto, a alegria e a emoção que, algumas vezes, senti no exterior ao ser alcançado por sons de músicas brasileiras, uma lista que inclui, entre outros, Gal Costa, João Bosco, Tom Jobim, Os Tincoãs e Villa-Lobos. Agora foi esse belíssimo choro que me pegou pelo pé — pelos ouvidos, né? — quando eu acabava de sair do teatro, tinha ido comprar ingressos.

Tenho uma certa aversão a manifestações de viés nacionalista, que exaltam um Brasil dominador, varonil, potência muito mais idealizada do que real. Exclamações que tratam mais do que nos foi concedido pela natureza — mares, montanhas, florestas, rios — e menos das conquistas pelo engenho e a arte de um povo sofrido, formado em sua maioria por descendentes de escravizados e de imigrantes.

Mas tenho um profundo e interminável afeto pela beleza produzida por essa mesma gente, formas de expressão que se traduzem em manifestações artísticas e culturais mais consagradas — música, literatura, pintura, teatro, cinema — e em outras criadas e/ou desenvolvidas por aqui, como o desfile das escolas de samba.

Na mesma toada, o drible que Garrincha esculpiu no ar (acho que a definição é do Armando Nogueira) mereceria o grande prêmio de qualquer bienal de artes plásticas, faz uma tabelinha estética, lúdica e emocional com os parangolés do Hélio Oiticica. 

E aí, volto à música, talvez a nossa maior contribuição à humanidade no campo das artes convencionais, que tanto nos dá um sentimento de pertencimento, de identificação. Mais, ressalta as nossas diferenças origens étnicas e culturais. Mistura influências africanas, europeias, indígenas, orientais, o que for. 

Nossas festas juninas remetem a danças de salão europeias (é só comparar os passos e as instruções adaptadas do francês), o chorinho, tão carioca, é herdeiro da polca e de outros ritmos, a bossa nova tem um pé no jazz, o samba, nossa melhor tradução, foi criado a partir de culturas africanas. A mistura é ótima, por oferecer diferentes alternativas musicais e também por não traduzir uma ideia de hegemonia cultural, algo que poderia ser usado até como uma forma de afirmação xenófoba e excludente.

Tudo isso nos embala, faz carinho. Daí minha surpresa e alegria ao ser alcançado pelas notas escritas por João Pernambuco, partitura em notas agudas são pontuadas por outras, graves, combinação que inclui, celebra a harmonia dos encontros, não o rompimento.

Um Brasil afável e criativo, de Pixinguinha, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Chico Buarque, João Gilberto, Cartola, Nelson Cavaquinho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, da Rebeca Andrade — aquela que faz o funk dar saltos pelo mundo.