Os torpedos lançados pela família Bolsonaro na direção de Pablo Marçal mostram que o ex-presidente percebeu o risco que corre de perder o posto de maior líder da extrema direita brasileira. Os ataques reeditam episódios ocorridos no mandato do ex-capitão: qualquer aliado que ameaçasse fazer frente à sua liderança era defenestrado ao som de ofensas compatíveis com letras de antigos boleros.
Jair Bolsonaro foi alçado à condição de liderança nacional graças a uma improvável conjunção de fatores, como a Lava Jato, a crise econômica e o descrédito em relação a políticos mais identificados com o chamado "sistema".
Para cavalgar o cavalo que passou à sua frente, Bolsonaro sequer precisou incluir em seu repertório questões básicas ligadas à administração pública e à economia, tratou de repetir os chavões sobre família, Deus, militares, pátria, que ele continua a recitar pelo país. Sua conversão ao liberalismo de Paulo Guedes ocorreu não por convicção, mas pela necessidade de ter alguém capaz de juntar lé com cré no campo econômico e de emprestar alguma credibilidade à sua candidatura.
Diferentemente de Bolsonaro, Marçal, entre uma ofensa e outra destinada a adversários, apresenta e defende propostas para seu governo, quase todas ligadas ao discurso focado no empreendedorismo. Procura com isso mostrar que sua candidatura não é apenas ancorada em si, mas num conjunto de ideias sobre as quais é capaz de discorrer, tenta mostrar que é seu próprio posto Ipiranga.
Outro ponto que o separa de Bolsonaro é o seu enriquecimento graças, supostamente, ao próprio trabalho. Mesmo que ilusórias e descoladas da realidade quanto a excursão que liderou ao Pico do Marins, suas receitas para a prosperidade foram compradas por muita gente que nele vê um exemplo de pessoa bem-sucedida graças ao seu esforço e sua competência.
Apesar de suas recentes críticas ao tamanho do Estado, Bolsonaro viveu e vive graças ao dinheiro público, exemplo seguido por seus filhos. Fora sua frustrada incursão ao garimpo e o empreendedorismo ensaiado com a venda de bolsas feitas com tecido de paraquedas, o ex-presidente sempre teve seu contracheque emitido por órgãos oficiais, como militar e político. Até mesmo a renda extra que a família teria amealhado de funcionários de gabinetes tem origem pública.
Ao exibir currículo e discurso mais atuais, conectados a uma parcela da sociedade que não acredita em progresso coletivo e está antenada com fórmulas de enriquecimento que driblem caminhos institucionais como o do estudo, Marçal representa um desafio para Bolsonaro e seu samba de uma nota só, o "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".
Mais: se chegar à frente do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), apoiado — ainda que a contragosto — pelo ex-presidente, o empresário vai demonstrar que a liderança bolsonarista não é tão forte assim e que a fila da extrema direita começou a andar.
Isso ameaçaria o prestígio do ex-capitão no PL — partido que vestiu a roupa da direita apenas para surfar na onda bolsonarista — e o projeto de ganhar uma anistia do Congresso Nacional. Integrantes do Centrão não vão querer comprar uma briga dessas para beneficiar alguém enfraquecido.
A pesquisa Datafolha que registrou o crescimento de Marçal revelou que outros candidatos apoiados por Bolsonaro patinam em cidades como Rio, Belo Horizonte e Recife. Uma derrota em todas essas capitais indicaria que o ex-capitão teria sido útil para derrotar o petismo em 2018 e criar uma referência para uma visão conservadora até então dispersa. Teria, portanto, exercido seu papel histórico, e pronto. Seria apenas mais uma vítima da livre concorrência capitalista que ele tanto diz ter passado a defender. E como ele próprio disse na época da pandemia, não vai adiantar ficar chorando.