Fim de uma era que permanecerá viva

Cada um do seu jeito, eles demonstraram um talento absurdo, quebraram barreiras estéticas e poéticas, introduziram uma nova forma de cantar e pensar o país - atitudes essencialmente políticas

Por Fernando Molica

Bethânia e Caetano, integrantes da maior geração da música brasileira.

Parafraseando Gilberto Gil: fãs, correi: é chegada a hora de aproveitar os últimos momentos em grandes palcos de artistas que, mais do que carreiras, ajudaram a construir um país, a forjar novas e surpreendentes visões do que somos.

Ao comentar o show de Caetano Veloso e Maria Bethânia, o jornalista Mauro Ferreira cantou a pedra, viu na reunião dos irmãos o anúncio do fim de um ciclo de 60 anos do que se convencionou chamar de música popular brasileira, a MPB.

Ao anunciar que fará uma última turnê, Gil, 82, seguiu o exemplo de Milton Nascimento, 81, e se prepara para descer do palco. Ao convocar Mônica Salmaso para dividir parte do repertório de seu último show, Chico Buarque, 80, também mostrou que já não é tão fácil segurar a onda sozinho. Pela primeira vez nos últimos tempos, não apresentou um conjunto de músicas inéditas.

Caetano fez este ano aquela que, segundo ele, seria sua última turnê internacional. A estreia do ótimo show que encerrou ontem sua temporada no Rio mostrou algumas dificuldades do cantor e compositor. Sua voz chegou a falhar em "Cajuína"; ele, tão falante, optou por ler um texto em homenagem a Gal Costa.

Chegou a colocar óculos para recorrer ao teleprompter que exibia as letras das canções — a cola também foi usada por Bethânia, que passou a maior parte da apresentação olhando para baixo, para o aparelho.

Eles, não tem jeito, envelheceram, mas não ficaram velhos. Continuam ativos, desafiadores. Caetano mantém o viés de nadar contra correntes até quando parece derrapar para o conservadorismo ao cantar o louvor "Deus cuida de mim", e ressaltar a importância do crescimento do número de evangélicos no país. Só quem não entende nada pode negar esta relevância e suas consequencias pessoais, políticas e sociais.

Todos esses grandes nomes têm consciência do papel que exercem na cultura brasileira desde os anos 1960. Cada um do seu jeito, eles demonstraram um talento absurdo, quebraram barreiras estéticas e poéticas, introduziram uma nova forma de cantar e pensar o país, atitudes essencialmente políticas. Ao protestarem contra a ditadura, todos — cada um do seu jeito — viraram nossos tradutores e intérpretes.

Mais que tudo, são grandes produtores de beleza e de encantamento. Temos o privilégio de conviver com uma geração única, o fato de que todos têm idades parecidas fortalece essa ideia de um coletivo formado por diferentes individualidades que seguiram seus próprios caminhos.

Herdeiros e contemporâneos de mais velhos como Pixinguinha, Cartola, Tom Jobim, João Gilberto, Dalva de Oliveira, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, mergulharam na tradição para apontar novas possibilidades. E, mais do que tudo, tornaram nossa vida mais bonita, emocionante e suportável. A arte que produzem vai permanecer, mas não se pode desperdiçar a chance de ver essas derradeiras noites de palco de cada um deles.