As diferenças que nos unem

Ávidos por um pretexto que legitimasse a luta política, os que foram aos teclados despejar argumentos preconceituosos em relação à argelina omitiram um ponto fundamental: todos somos diferentes uns dos outros

Por Fernando Molica

O francês Victor Wembanyama, de 2,22 metros, é marcado por adversário japonês em jogo da Olimpíada.

Os que tanto reclamam da boxeadora argelina Imane Khelif deveriam também falar do jogador de basquete francês Victor Wembanyama, de 2,22m de altura, ou do ex-nadador alemão Michael Gross, de 2,13m de envergadura.

As características biológicas e/ou físicas dos três lhes garantem (garantiram, no caso do Gross) vantagens sobre oponentes, mas eles não cultivaram essas diferenças, são o que são pela própria natureza.

Imane, medalha de ouro em Paris, mulher nascida mulher, virou alvo de xingamentos pelo fato de sua condição feminina ter sido questionada pela Associação Internacional de Boxe, avaliação descartada pelo Comitê Olímpico Internacional. Ela seria portadora de um distúrbio capaz de fazer com que seus níveis de testosterona sejam superiores aos de outras pessoas do mesmo sexo.

Na última Olimpíada, a surra que deu na italiana Angela Carini foi usada por conservadores para reforçar a ideia de que os avanços no campo moral e sexual dariam margem a injustiças.

Ávidos por um pretexto que legitimasse a luta política, os que foram aos teclados manifestar ódio à argelina omitiram um ponto fundamental: todos somos diferentes uns dos outros, não seria possível — nem, principalmente, humano — criar uma régua que estabelecesse um padrão de normalidade.

Essas diferenças ficam mais evidentes no esporte: jogadores da elite do basquete e do vôlei são muito altos. A seleção brasileira de basquete tem cinco atletas com mais de dois metros de altura. Na natação há cada vez mais grandalhões: ao mergulhar, o 1,95m do nosso Cesar Cielo já lhe deixava alguns centímetros na frente de alguns concorrentes. A altura é uma vantagem ainda maior em provas curtas, como na de 50 metros livres (na Olimpíada de Pequim, Cielo foi ouro nesta disputa).

Medalha de prata em Los Angeles, em 1984, o brasileiro Ricardo Prado talvez hoje nem se animasse a mergulhar tão fundo — ele tem 1,68m. Mas o ser humano costuma supreender, ele, que perdeu o ouro pro canadense Alex Baumann (1,89m), chegou na frente do australiano Robert Woodhouse (1,90m).

Quem tanto fala em injustiça no caso da argelina não pode considerar razoável que um galalau de 1,90m pudesse disputar a mesma prova que um baixinho de 1,68m: são 22 centímetros de diferença! Mas ninguém reclamou disso, o que apenas ressaltou as qualidades de Prado.

Não tem jeito: alguém aí gostaria de ter no seu time um zagueiro de 1,70m? O 1,55m da grande Rebeca Andrade representa uma vantagem em relação a meninas mais altas, estas sabem que dificilmente teriam sucesso na ginástica artística. As diferenças sociais e econômicas são ainda piores, também impactam no crescimento de uma criança e podem determinar sua incapacidade de se tornar um atleta em alguns esportes. Em casos mais extremos, até seu desenvolvimento intelectual é afetado.

É justo que homens e mulheres não disputem entre si, mas é bom que fiquemos por aí. Qualquer busca mais aprofundada de tentar definir quem é desse ou daquele sexo abriria margem para uma perigosa utilização da ciência para justificar discriminações. Algo que remeteria ao italiano Cesare Lombroso ou, pior, ao nazista Josef Mengele.

O excesso de força e de altura que dá vantagem em ringues e quadras tende a ser um estorvo na vida cotidiana, gerar bullying e preconceito. A Olímpiada precisa cada vez mais fiel à busca de superação de fronteiras, de ampliação do reconhecimento da diversidade que nos caracteriza.

No mais, eu, no início da adolescência, míope e com 1,72 m, joguei basquete pelo Vasco — tenho provas. A carreira não foi muito longa, e o mundo não perdeu nada com isso.