STF, o negociador da República

A Constituição é clara ao usar os verbos "julgar" e "processar" para definir as funções do STF. O regimento da corte vai na mesma linha: utiliza 37 variações de "julgar" e sete de "processar"

Por Fernando Molica

Reunião no STF sugeriu mudanças nas emendas parlamentares

Tá legal, eu aceito o argumento de que o acordo sobre emendas amenizou o modelo monstruoso criado nos últimos anos. O problema é que a reunião escancarou de vez o papel político do Supremo Tribunal Federal, que, de guardião da Constituição, foi transformado em algo como um negociador-geral da República.

A Constituição é clara ao usar os verbos "julgar" e "processar" para definir funções do STF. O regimento da corte vai na mesma linha: utiliza 37 variações de "julgar" e sete de "processar". Os dois documentos não falam em negociar, transacionar, conchavar, articular, acochambrar.

O STF existe, principalmente, para definir a constitucionalidade de leis e, no limite, de artigos da própria Constituição, como frisou o ministro Flávio Dino ao votar no caso das emendas. É admissível que magistrados conversem com as partes, avaliem pontos de vista, procurem algum esclarecimento. O que não dá é para o Judiciário deixar de ser árbitro e atuar como jogador.

Cabe ao STF definir a legalidade ou ilegalidade, não protagonizar um estica/puxa/empurra para fazer com que determinada lei caiba dentro da Constituição. Não pode cair na lógica do com jeito vai — é assim que a casa cai.

Ao votar, Dino classificou de "grave anomalia" a existência, num sistema presidencialista, de "parlamentares que ordenam despesas discricionárias como se autoridades administrativas fossem". Acrescentou que "o equivocado desenho prático das emendas impositivas gerou a 'parlamentarização' das despesas públicas sem que exista um sistema de responsabilidade política e administrativa ínsito ao parlamentarismo."

Dino fez o que um ministro do STF poderia e deveria fazer, disse que, do jeito que estão configuradas, tais emendas representam uma violação constitucional. Segundo ele, caberia ao Poder Executivo examinar a validade dos gastos e, de acordo com o que prega a Constituição, avaliar a viabilidade técnica das obras e dos serviços beneficiados pelos parlamentares.

Até aí, ok. O ministro julgou uma demanda vinda da sociedade, mandou parar a execução das emendas, entendeu que, para que tudo ficasse nos conformes, seria necessário adequar as emendas a princípios constitucionais. Caberia, a partir daí, devolver a bola para as partes e deixar que elas se entendessem.

O problema foi o passo seguinte, quando o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, decidiu patrocinar uma negociação entre os poderes Legislativo e Executivo e promoveu a tal reunião dos onze ministros da corte com os presidentes da Câmara e do Senado e representantes do Palácio do Planalto.

A questão é simples: quem julga não pode participar das conversas. As partes que tratem negociar, de ouvir seus constitucionalistas para saber o que pode ser feito para se enquadrar nas exigências aprovadas por unanimidade pelo STF. Não cabe a um magistrado — ainda mais, a onze deles, todos da corte suprema — atuar como consultor jurídico, sugerir mudanças e adaptações.

A situação é tão supreendente que, de acordo com algumas notícias, coube ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), verbalizar uma constatação de extrema lucidez, a de que, na reunião, havia um placar de 2 a 1, dois poderes (Executivo e Judiciario) unidos contra o Legislativo.

O STF tem o dever de decidir, de romper impasses, de pacificar. No fim das contas, caberá à corte definir se a solução que for encontrada é compatível com a Constituição. Mas isso deveria ser feito sem contaminação política — diferentemente do que ocorre com integrantes dos outros poderes, ministros da corte não são eleitos, não passam pelo voto popular, têm, portanto, a obrigação de, pelo menos, demonstrarem alguma distância do Legislativo e do Executivo. Juízes não podem chutar em gol.

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