Othon Bastos e os gritos lançados no ar

"Não me entrego, não" ilustra a tensão entre um país que tentava digerir seu passado e buscar algum futuro e um outro, já formatado por uma opressão que gerava gritos que pareciam encontrar limites no ar

Por Fernando Molica

Ator na peça "Não me entrego, não" em cartaz no Rio.

Ao encarar o desafio de, aos 91 anos, protagonizar um monólogo de quase duas horas de duração, Othon Bastos lançou um grito de defesa do teatro, das artes em geral e da liberdade. Escrita e dirigida por Flávio Marinho, "Não me entrego, não", em cartaz no Teatro Vannucci, no Rio, faz um balanço da carreira do ator e, principalmente, da vida brasileira vista por quem está há décadas no palco e diante das câmeras.

Não foram tempos fáceis para os que, como ele, não admitem a sempre falsa separação entre arte e política. O desafio de criar, de questionar o poder, de apresentar novas visões sobre valores sociais e estéticos é sempre político, vai muito além de questões panfletárias ou partidárias.

E é cara a cara com o público que lota as sessões que o ator ironiza passagens pouco gloriosas de sua carreira, exalta o trabalho de autores, diretores e colegas, narra as cambalhotas necessárias para conseguir viver da arte mesmo sob uma ditadura como a implantada no país em 1964.

O título da peça remete a "Perseguição", música de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha que embala os minutos finais de "Deus e o diabo na terra do sol", clássico do diretor baiano em que Bastos interpretou o cangaceiro Corisco, perseguido por Antônio das Mortes (Maurício do Valle), justiceiro que age em nome do poder.

O texto de Marinho cita outros trabalhos do ator, mas estabelece uma espécie de diálogo entre o filme de Glauber, que estreou em 1964, poucos meses depois do golpe, e a peça "Um grito parado no ar", de Gianfrancesco Guarnieri, de 1973, no auge da ditadura — Bastos foi produtor e ator da montagem de estreia.

Ambientado no sertão nordestino, o longa remete a impasses brasileiros como a religiosidade, a pobreza no campo, o conflito entre o banditismo e a ordem estabelecida. Trata de forma alegórica de um dos focos da crise política, social e institucional que desaguaria na intervenção militar: Antônio das Mortes que mata Corisco. A peça trata da ditadura já consumada. Para driblar a censura, Guarnieri jogou os conflitoes para os ensaios de uma montagem teatral. 

"Não me entrego, não" ilustra a tensão entre um país que, até o golpe, tentava digerir seu passado e buscar algum futuro e um outro, formatado por uma opressão que gerava gritos que pareciam encontrar limites no ar. No palco, o ator encarna este desafio, são particularmente impactantes os momentos em que ele reinterpreta trechos de "Um grito..." e de "O jardim das cerejeiras", de Anton Tchekhov, outro texto que trata do embate entre um velho e um novo mundo.

Em cena, Bastos dança e revela força até ao admitir fragilidade (o cansaço de segurar a ação, a necessidade de volta e meia recorrer ao ponto encarnado por Juliana Medella). No fim, emocionado após recitar trecho da canção-tema de "Um grito...", ele reafirma que há sempre um céu sobre a chuva e que mais fortes são os poderes do teatro.