Pablo Marçal e a ameaça a Jair Bolsonaro

Apesar de suas recentes críticas ao tamanho do Estado, Bolsonaro sempre viveu graças ao dinheiro público, exemplo seguido por seus filhos

Por Fernando Molica

Bolsonaro, que apoia Nunes, tenta se afastar de Marçal

Os torpedos lançados pela família Bolsonaro na direção de Pablo Marçal mostram que o ex-presidente percebeu o risco que corre de perder o posto de maior líder da extrema direita brasileira. Os ataques reeditam episódios ocorridos no mandato do ex-capitão: qualquer aliado que ameaçasse fazer frente à sua liderança era defenestrado ao som de ofensas compatíveis com letras de antigos boleros.

Jair Bolsonaro foi alçado à condição de liderança nacional graças a uma improvável conjunção de fatores, como a Lava Jato, a crise econômica e o descrédito em relação a políticos mais identificados com o chamado "sistema". 

Para cavalgar o cavalo que passou à sua frente, Bolsonaro sequer precisou incluir em seu repertório questões básicas ligadas à administração pública e à economia, tratou de repetir os chavões sobre família, Deus, militares, pátria, que ele continua a recitar pelo país. Sua conversão ao liberalismo de Paulo Guedes ocorreu não por convicção, mas pela necessidade de ter alguém capaz de juntar lé com cré no campo econômico e de emprestar alguma credibilidade à sua candidatura.

Diferentemente de Bolsonaro, Marçal, entre uma ofensa e outra destinada a adversários, apresenta e defende propostas para seu governo, quase todas ligadas ao discurso focado no empreendedorismo. Procura com isso mostrar que sua candidatura não é apenas ancorada em si, mas num conjunto de ideias sobre as quais é capaz de discorrer, tenta mostrar que é seu próprio posto Ipiranga.

Outro ponto que o separa de Bolsonaro é o seu enriquecimento graças, supostamente, ao próprio trabalho. Mesmo que ilusórias e descoladas da realidade quanto a excursão que liderou ao Pico do Marins, suas receitas para a prosperidade foram compradas por muita gente que nele vê um exemplo de pessoa bem-sucedida graças ao seu esforço e sua competência.

Apesar de suas recentes críticas ao tamanho do Estado, Bolsonaro viveu e vive graças ao dinheiro público, exemplo seguido por seus filhos. Fora sua frustrada incursão ao garimpo e o empreendedorismo ensaiado com a venda de bolsas feitas com tecido de paraquedas, o ex-presidente sempre teve seu contracheque emitido por órgãos oficiais, como militar e político. Até mesmo a renda extra que a família teria amealhado de funcionários de gabinetes tem origem pública.

Ao exibir currículo e discurso mais atuais, conectados a uma parcela da sociedade que não acredita em progresso coletivo e está antenada com fórmulas de enriquecimento que driblem caminhos institucionais como o do estudo, Marçal representa um desafio para Bolsonaro e seu samba de uma nota só, o "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Mais: se chegar à frente do atual prefeito, Ricardo Nunes (MDB), apoiado — ainda que a contragosto — pelo ex-presidente, o empresário vai demonstrar que a liderança bolsonarista não é tão forte assim e que a fila da extrema direita começou a andar.

Isso ameaçaria o prestígio do ex-capitão no PL — partido que vestiu a roupa da direita apenas para surfar na onda bolsonarista — e o projeto de ganhar uma anistia do Congresso Nacional. Integrantes do Centrão não vão querer comprar uma briga dessas para beneficiar alguém enfraquecido.

A pesquisa Datafolha que registrou o crescimento de Marçal revelou que outros candidatos apoiados por Bolsonaro patinam em cidades como Rio, Belo Horizonte e Recife. Uma derrota em todas essas capitais indicaria que o ex-capitão teria sido útil para derrotar o petismo em 2018 e criar uma referência para uma visão conservadora até então dispersa. Teria, portanto, exercido seu papel histórico, e pronto. Seria apenas mais uma vítima da livre concorrência capitalista que ele tanto diz ter passado a defender. E como ele próprio disse na época da pandemia, não vai adiantar ficar chorando.