Por: Fernando Molica

Literatura não é pra fazer cafuné

A escritora sul-coreana Won-pyung Sohn | Foto: Reprodução/Internet

Um dos grandes sucessos de venda da Bienal do Livro paulista é a sul-coreana Won-pyung Sohn, expoente da chamada "ficção de cura" — algo que, pelo que entendi, oferece ao leitor conforto, aconchego e exemplos edificantes.

Cada um lê o que gosta, mas é estranho que literatura seja vista como passaporte para viagens a uma zona de conforto, que dê lições supostamente positivas, que tente ocupar o lugar de cafunés na cabeça.

O sucesso de vendas — foram comprados 50 mil exemplares de seu primeiro livro lançado no país — mostra que há um público ávido por essa versão ficcional da auto-ajuda, mesa de bar virtual em que alguém dá conselhos para um amigo mais desesperançado que torcedor brasileiro com a seleção do Dorival Júnior. 

Não há o certo ou o errado na produção artística; a pessoa que compra um livro ou, pelo menos, dedica horas do seu tempo para lê-lo sempre tem razão. Mas literatura não é remédio, não tem bula, não deveria ser prescrita como elixir capaz de curar doenças da alma, de funcionar como um tônico milagroso que transforma um acomodado num lutador que sai de peito aberto para enfrentar as dificuldades da vida.

A melhor literatura não é a que mente ao exaltar modelos e propor soluções, mas a que provoca, instiga, questiona certezas, levanta dúvidas, nos joga contra a parede — além, claro, de nos entreter e gerar prazer. Crescemos nos embates, com os outros e com nós mesmos.

É fundamental enfrentar os dilemas morais de Raskólnikov, de "Crime e castigo", de Dostoiévski; a futilidade cúmplice de Brás Cubas, de Machado de Assis; a brutalidade e o desespero do assassino de "O cobrador", de Rubem Fonseca; os impasses de Ifemelu, de "Americanah", de Chimamanda Ngozi Adichie, e de Clara e Ana, de "Duas iguais", de Cíntia Moscovich; os dilemas de Paulo Honório de "S. Bernardo", de Graciliano Ramos; a ambição de Lucien Chardon, de "Ilusões perdidas", de Balzac; a vergonha de Nelo, de "Essa terra", de Antônio Torres.

Esses livros trazem personagens transgressores, dúbios, frágeis e, em alguns casos, cruéis, gente como a gente. Criaturas que nos despertam sentimentos nem sempre claros, vivem situações que remetem às nossas próprias histórias, dúvidas e angústias.

A boa ficção foge de supostos seres perfeitos, sabe que a contradição é que os humaniza. Em artigo publicado na "Folha de S.Paulo", o escritor Bernardo Carvalho alertou para uma tendência de uniformização que, ao adotar como padrão a radicalidade política e a diferença, "as anula e as pasteuriza".  Frisa que o lugar de resistência da arte é o desvio.

Ao tratar de seres fictícios, mas que atuam na sempre imperfeita lógica humana, os bons escritores tratam de vidas não necessariamente como elas são, mas como poderiam ser. Ao trazerem o outro para o centro do palco, abram espaço para a compreensão do diferente — e todos nós somos diferentes aos olhos alheios.