O lançamento, pelo governo paulista, de uma linha de crédito chamada Meu Primeiro Barco traduz de maneira quase caricatural o tamanho da desigualdade num país em que tanta gente não tem casa decente e acesso a redes de água e esgoto.
Desenvolvido em parceria com o Banco do Brasil, o programa não é voltado para pescadores em busca de equipamentos de trabalho, mas para os amantes dos prazeres náuticos.
Criadora do pacote, a Secretaria Estadual de Turismo tem razão ao dizer que a iniciativa é importante para movimentar a economia. Sim, mas não deixa de ser esquisito financiar brinquedinhos particulares que só estão ao alcance de uma pequena parcela da população — o programa visa, principalmente, estimular a produção de barcos tidos como baratos, que custam partir de R$ 100 mil.
O nome escolhido para a linha de crédito piora a história. Acaba soando irônico ao remeter a programas sociais como o Minha Casa, Minha Vida, o Pé-de-Meia, Bolsa Família, São Paulo Amigo do Idoso, Bom Prato, Cartão Família Carioca.
Fica parecendo algo como Meu Iate, Minha Vida e, ironia, lembra o "Lulalá", jingle de campanhas presidenciais do petista que fala em "Meu primeiro voto" (o Ricardo Salles deve estar arrependido de no Ministério do Meio Ambiente, não ter criado o Minha Primeira Motosserra).
Dá até para imaginar uma daquelas cenas comuns em programas eleitorais, quando o/a chefe do executivo entrega a chave da casa própria para uma pessoa humilde, que chora de felicidade. Depois, o governante aparece na cozinha, tomando café, comendo um pedaço do bolo feito pela proprietária.
Imaginemos algo semelhante no caso do Meu Primeiro Barco. O governador, de camiseta, bermuda e chinelo, entrega o barquinho pro novo homem do mar, que o convida para dar uma volta no possante enquanto parte da família termina de embarcar sanduíches e coolers lotados de latas de cerveja.
Assessores do político ainda conseguirão impedir que o dono, que começou a entornar umas geladas duas horas antes, tente quebrar uma garrafa de espumante no casco do barco para marcar seu batismo. A comitiva, porém, não impedirá o momento em que sua excelência, desacostumado com as pequenas dimensões da embarcação, tropeçará numa vara de pescas e cairá no mar.
Uma velha piada diz que alguém demonstra não ter condições de comprar um barco ou um avião quando pergunta se o custo de manutenção do bicho é muito alto. Uma lancha, por mais simples que seja — a tal de R$ 100 mil —, consome combustível, requer acessórios, precisa ser guardada na garagem de casa ou numa marina — neste caso, são poucas e caras as vagas disponíveis. Não existe Rio Rotativo ou Zona Azul para estacionamento de barco.
Insisto, nada contra o estímulo ao lazer e ao turismo, é impressionante a quantidade de dinheiro que o Rio poderia ganhar caso a baía de Guanabara fosse despoluída. Mas esse tipo de investimento deveria focar em iniciativas que visam o conjunto, e não o particular. Seria o caso de financiar a criação de marinas, de ancoradouros, de locais de atracação capazes também de atender a barcos maiores, que levam grupos de turistas menos abonados.
No caso de carros elétricos, por exemplo, caberia ao Estado criar ou estimular a criação de pontos de abastecimento e, mesmo, facilitar a instalação de montadoras desses veículos, mas não subsidiar sua a compra por pessoas físicas.
No fim das contas, a iniciativa náutica reforça a lógica brasileira de facilitar a vida dos que já têm alguma grana — dinheiro, inclusive o estatal, puxa dinheiro. E já que falamos em veículos, o governo paulista poderia, talvez, criar o Minha Primeira Bike — num país pobre como o nosso, muitas crianças ainda sonham com esse presentão de Natal.