"Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como se desarranjando o caminho de volta". A belíssima frase está na primeira página do novo romance de Chico Buarque, "Bambino a Roma" (Companhia das Letras).
Ainda nem comecei a ler o livro, mas o trecho me chegou, sublinhado a lápis, pelas mãos e pelo espanto de uma professora, escritora e doutoranda em letras que acabara de comprar seu exemplar. "Veja se estou exagerando, ou se isso é bonito demais", afirmou.
Concordei que a frase é mesmo linda. Lírica e ao mesmo tempo exata, ajuda a tatear uma definição de boa literatura. Trata-se de descrever algo aparentemente simples — o efeito causado por um barco que corta o mar —, mas que esconde e revela muito mais.
Não era apenas um passeio de de semana qualquer, ou uma viagem de férias, mas o começo de uma longa jornada feita por um menino que, aos oito anos, acompanhava sua família que trocava o Brasil pela Itália. Um garoto tinha a vida desarrumada, a espuma do mar frisava qualquer possibilidade aparente de retorno.
Estamos falando de algo ocorrido no início dos anos 1950, em que as informações sobre países estrangeiros eram mais escassas, a TV ainda começava. O país de destino ainda tentava se reerguer depois da derrota nazifascista na Segunda Guerra Mundial.
Na frase, Chico dá a dimensão da insegurança e do drama vividos pelo menino. Imagine o que é trocar rua, bairro, escola, amigos, cidade, idioma aos oito anos.
Não li sequer a primeira página do livro, mas imagino que ele deveria viver um misto de expectativa e de medo, de alegria e de tensão; aquela história de querer ir e, ao mesmo tempo, desejar pela volta.
Levei três parágrafos e sete frases para tentar explicar, de maneira convencional e não literária — isso aqui é um artigo, afinal —, o que Chico resumiu e, ao mesmo tempo, ampliou em 22 palavras. Sua frase vai na linha do conselho a escritores dado pelo russo Anton Tchekhov (1860-1904): "Não diga que a lua está brilhando. Mostre-me seu reflexo num caco de vidro".
Contar uma boa história inclui tratar do que escapa de quem olha para o óbvio, a lua ou a espuma do mar. É quando escritor alerta para algo que, depois, parece até banal — aquela história do como é que não vi isso antes?
Como compositor, Chico Buarque já fez isso diversas vezes. Ressaltou que a dor da separação fica ainda mais evidente no paletó que, no armário embutido, ainda enlaça um vestido; falou em adorar pelo avesso; previu que, daqui a milênios, futuros amantes quiçá se amarão com o amor deixado por um outro casal.
São tantas as canções que nos mostraram outras formas de ver e sentir o mundo. Depois da frase escrita no novo livro e que me foi destacada pela Thaís Velloso, ninguém vai olhar do mesmo jeito para alguma espuma no mar.