É bem provável que entre os brasileiros que gastam cerca de R$ 20 bilhões por mês em apostas online estejam os 67% da população que, no ano passado, disseram a pesquisadores da Genial/Quaest que eram contra a legalização dos jogos de apostas e de cassinos.
A contradição entre o faça o que eu digo mas não o que faço faz lembrar o publicitário Cid Pacheco, de quem tive a sorte de ser aluno na Escola de Comunicação da UFRJ. Ele alertava para a necessidade de se fazer uma leitura crítica de pesquisas de opinião — muitas vezes, entrevistados respondem o que consideram mais adequado aos ouvidos do entrevistador. Não se usava a expressão politicamente correto, mas era por aí.
Ele citava como exemplo uma pesquisa encomendada por uma grande montadora de automóveis dos Estados Unidos. Em meados da década de 1970, em meio à disparada dos preços do petróleo, ouviu consumidores sobre a troca daqueles carros imensos e beberrões pelo padrão que começava a ser imposto pelo Japão, veículos menores, mais econômicos.
O resultado foi positivo, a maioria dos norte-americanos declarou que adoraria aposentar aquelas banheiras sobre rodas. A tal montadora redirecionou suas linhas e passou a fabricar carros menores — que encalharam em seus pátios.
De acordo com Cid, pesquisadores trataram de se debruçar sobre os resultados do levantamento e produziram um estudo cujo nome, hoje, teria dificuldades para ser publicado (cito aqui apenas para ser fiel aos fatos, perdoem-me, leitoras): "A esposa e a amante".
Os caras concluíram que, diante de uma pergunta que remetia a algo racional — a escolha de carros menores e econômicos —, o consumidor, diante do pesquisador, se comportara como o jovem que enumerava qualidades de sua futura esposa: discreta, dedicada à casa e aos filhos, a tal da bela, recatada e do lar.
Mas, no fundo d'alma e no reino dos sonhos, os caras desejavam mulheres voluptuosas, cheias de atributos, desinibidas com aquelas que rebolavam em boates. Que mané carrinho pequeno, mermão, os sujeitos queriam automóveis como aqueles descritos por Nelson Rodrigues, com cascata artificial e filhote de jacaré.
Se governo e legisladores não tomarem atitudes bem mais radicais do que as aprovadas até agora, a epidemia gerada pelas bets entre nós terá consequências bem mais graves do que a quase falência de uma grande montadora de veículos.
Cada adulto tem o sagrado direito de fazer o que bem entende de sua vida, mas não pode prejudicar terceiros (caso de beber e dirigir, por exemplo). A compulsão pelas apostas não afeta apenas a vida do jogador, mas de toda a sua família e, por extensão, da sociedade. As bets são até mais danosas que os cassinos físicos, não é preciso sequer vestir uma roupa adequada e sair de casa para apostar, não há barreiras concretas que impeçam a participação de crianças e adolescentes.
O comércio já sentiu uma diminuição do consumo, fenômeno atribuído ao direcionamento de dinheiro para apostas; o Banco Central detectou um aumento na inadimplência causado pelo mesmo motivo.
Jogo, como qualquer droga — aí incluídos cigarros e bebidas —, é algo sedutor, que gera expectativa de prazer ou de recompensa (ninguém se vicia em chuchu). Seria radical e, talvez, impossível, bloquear todos os sites de apostas, algo que, no limite, atentaria contra a liberdade individual.
Mas cabe ao Estado desestimular a adicção. Um país que criminaliza o uso de determinadas drogas e o aborto (dificultado até em casos previstos pela legislação) não pode permitir a propaganda de jogos de azar. O uso obrigatório de frases como "Jogue com responsabilidade" serve apenas para decorar a publicidade das bets.
O que está em jogo é algo relacionado à saúde pública e à sobrevivência de brasileiros. O governo e a sociedade não devem continuar a fazer esse tipo de aposta.