Sérgio Mendes e a morte de um Brasil

Ao longo de muitas décadas, o Brasil exportou essa poderosa imagem que nos associava à felicidade. Até bandidos do cinema americano davam um jeito de vir para cá: "Fly to Rio", ordenavam.

Por Fernando Molica

Sérgio Mendes interpretou um país criativo e poderoso

A morte do pianista e compositor Sérgio Mendes remete a um Brasil que já foi muito mais desejado e admirado no mundo, sinônimo de alegria, festa e beleza. Uma imagem hoje esmaecida: semana passada, o jogador de futebol americano Darius Slay, do Philadelphia Eagles, criticou a realização de um jogo de seu time em São Paulo, ao ressaltar que nosso país tem uma alta taxa de criminalidade. 

Como lembrou a jornalista Flávia Oliveira, a morte de Mendes ressalta a importância do que passou a ser chamado de "soft power", poder suave, numa tradução literal. É uma qualidade capaz de angariar simpatia para, no caso, um país. Algo que tem uma grande importância não apenas na atração de turistas como na movimentação de outros setores da economia. 

Ao se espalhar pelo mundo, o cinema americano divulgou e estabeleceu modos de vida, vendeu produtos, gerou carinho e identificação com um país de história complicada, que ao longo de sua existência invadiu outras terras e patrocionou tantos golpes de Estado.

É quase inevitável suspirarmos ao falarmos da França, país que transpira charme, elegância, comida, vinhos espetaculares, tradição artística e cultural. Tudo isso é verdade - fora que eles sempre terão Paris -, mas a França também exigiu indenização pela independência do Haiti, fez testes nucleares na Polinésia, invadiu territórios, resistiu de maneira cruel à independência da Argélia, rendeu-se a Hitler, colaborou com o nazismo. 

Mas todos esses crimes históricos cometidos por Estados Unidos, França e tantas outras nações acabam ficando em segundo plano quando visitamos ou ouvimos falar das belezas que têm para mostrar - a famíla real britânica é outro poderoso instrumento de "soft power".

Ao longo de muitas décadas, o Brasil exportou essa poderosa imagem que nos associava à felicidade. Até bandidos do cinema americano davam um jeito de vir para cá: "Fly to Rio", ordenavam. Tivemos, ao longo do século 20, embaixadores como Carmen Miranda, Pelé, Garrincha, João Gilberto, Ary Barroso, Glauber Rocha, Tom Jobim, a Garota de Ipanema, as escolas de samba e o Carnaval, o próprio Mendes.

Mas, duro dizer, jogamos contra o nosso próprio patrimônio, cometemos o erro de acreditarmos na nossa imagem estereotipada. O país, ancorado na escravidão, fingiu não ver que não daria certo manter tanta gente excluída, fora da festa apresentada aos olhos gringos.

Chegamos ao século 21 sem resolvermos problemas de educação, saúde, saneamento e habitação, que impactam diretamente na segurança pública. Nos tornamos um país perigoso, triste, que, de uns anos pra cá, radicalizou na brutalidade, no preconceito e na violência, inclusive institucional. 

Sérgio Mendes batizou bandas que o acompanhavam com o nome do nosso país seguido dos dois últimos algarismos de um determinado ano, como no caso do Brasil 66, que produziu música alegre, inventiva, sofisticada, que dialogava com o mundo. Hoje, a trilha sonora seria outra, bem mais dura e menos dançante. A morte de Mendes ressalta um país que, doente, insiste em abrir mão do futuro.