Bolsonaro diante do espelho

Marçal parece se inspirar no estilo Bolsonaro de surpreender, de gerar fatos inesperados, de não se deixar enquadrar - foi nessa linha que o ex-capitão chegou ao Planalto.

Por Fernando Molica

Na Paulista, Bolsonaro chama Alexandre de Moraes de "ditador"

As idas e vindas da relação entre Jair Bolsonaro e Pablo Marçal mostram que, pela primeira vez desde sua transformação em liderança nacional, o ex-presidente encontra um adversário que ameaça sua hegemonia no campo da direita radical.

O ex-capitão dizimou ou humilhou aliados que lhe ousaram fazer frente: a lista inclui os ex-deputados Joice Hasselmann e Alexandre Frota e o senador Sergio Moro (União) que, depois de romper com o então chefe, teve que buscar uma reconciliação.

Agora, Bolsonaro encara uma espécie de versão atualizada de si mesmo, que navega com ainda mais facilidade pelas redes sociais, faz uso de linguagem extremada, deturpa fatos, revela descompromisso com o universo político tradional, procura encaixar na própria biografia a crença no mercado e incopora uma visão de fé que vai muito além da tríade Deus-Pátria-Família.

A retórica religiosa foi uma espécie de segunda farda vestida por Bolsonaro que, como político, insistia na marcha de uma nota só em defesa de direitos e privilégios dos militares. A esquerda entrou no seu alvo não por discordâncias de viés políticos ou econônomicos, mas por jogar no campo contrário ao dos fardados que instituíram a ditadura em 1964. 

Deus entrou nas prioridades de Bolsonaro na esteira de suas críticas ao apoio da esquerda à ampliação de direitos civis, o que contrariava também a chamada bancada da Bíblia no Congresso. Marçal, que passou parte da juventude imerso numa igreja evangélica, procura encarnar o discurso da fé e da prosperidade. Mostra-se como um vencedor, o pobre que, como Davi, derrotou o Golias e ficou rico. 

Desaforado, ele não passou recibo para a suposta nobreza de Bolsonaro de chamá-lo para o ato contra o ministro Alexandre de Moraes. Como um convidado que chega atrasado e bêbado a uma festa de casamento e ainda arrasta a noiva para a pista de dança, o candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo fez questão de contrariar o anfitrião.

Apareceu na Avenida Paulista em hora imprópria, fez barulho ao ser barrado e testemunhou a atitude de correligionários que levaram para a manifestação faixa e adesivos que o lançavam para a Presidência da República e aprisionavam Bolsonaro no passado.

Marçal parece se inspirar no estilo Bolsonaro de surpreender, de gerar fatos inesperados, de não se deixar enquadrar — foi nessa linha que o ex-capitão chegou ao Planalto. O então presidente foi tão fiel ao próprio estilo a ponto de se enforcar com a corda do negacionismo.

A atuação do coach que diz ter enriquecido com seus cursos, conseguiu fazer com que, no campo da extrema direita, Bolsonaro chegue a ser visto como um moderado. No governo, apesar das declarações bombásticas e das caneladas que distribuia no cercadinho do Alvorada, demonstrou ser um político maleável, que entregou as chaves do governo ao Centrão. Há poucos dias, ao perceber o risco de Ricardo Nunes (MDB) — seu candidato oficial à prefeitura — ser derrotado, lançour pontes para Marçal, que, no melhor jeito bolsonarista raiz, tratou de incendiá-las.

No Planalto, Bolsonaro algumas vezes chegou a ser apontado como a criatura que havia saído do controle de seus criadores e tutores. Marçal é uma nova versão de um radicalismo que não encontra limites pela frente, que, como o bolsonarismo, nutre-se do ódio, mas que, diferentemente do ex-capitão, diz apontar caminhos, acena com alguma construção.

Bolsonaro se acostumou a brigar com os inimigos de sempre, mas não preparou para enfrentar alguém que parece ter saído da própria costela, um filho bastardo, um 05; melhor, 5.0. É como se visse refletido num daqueles espelhos que distorcem as imagens.