Como uma espuma no mar

Concordei, claro. A frase, tão lírica e ao mesmo tempo tão exata, ajuda a tatear uma definição de boa literatura. Trata-se de descrever algo aparentemente simples - o efeito causado por um barco que corta o mar -, mas que esconde algo muito maior

Por Fernando Molica

O menino Chico Buarque, em Roma

"Eu não olhava a baía, mas sim a espuma que o transatlântico fazia no mar, como se desarranjando o caminho de volta". A belíssima frase está na primeira página do novo romance de Chico Buarque, "Bambino a Roma" (Companhia das Letras). 

Ainda nem comecei a ler o livro, mas o trecho me chegou, sublinhado a lápis, pelas mãos e pelo espanto de uma professora, escritora e doutoranda em letras que acabara de comprar seu exemplar. "Veja se estou exagerando, ou se isso é bonito demais", afirmou.

Concordei que a frase é mesmo linda. Lírica e ao mesmo tempo exata, ajuda a tatear uma definição de boa  literatura. Trata-se de descrever algo aparentemente simples — o efeito causado por um barco que corta o mar —, mas que esconde e revela muito mais.

Não era apenas um passeio de de semana qualquer, ou uma viagem de férias, mas o começo de uma longa jornada feita por um menino que, aos oito anos, acompanhava sua família que trocava o Brasil pela Itália. Um garoto tinha a vida desarrumada, a espuma do mar frisava qualquer possibilidade aparente de retorno.

Estamos falando de algo ocorrido no início dos anos 1950, em que as informações sobre países estrangeiros eram mais escassas, a TV ainda começava. O país de destino ainda tentava se reerguer depois da derrota nazifascista na Segunda Guerra Mundial. 

Na frase, Chico dá a dimensão da insegurança e do drama vividos pelo menino. Imagine o que é trocar rua, bairro, escola, amigos, cidade, idioma aos oito anos.

Não li sequer a primeira página do livro, mas imagino que ele deveria viver um misto de expectativa e de medo, de alegria e de tensão; aquela história de querer ir e, ao mesmo tempo, desejar pela volta.

Levei três parágrafos e sete frases para tentar explicar, de maneira convencional e não literária — isso aqui é um artigo, afinal —, o que Chico resumiu e, ao mesmo tempo, ampliou em 22 palavras. Sua frase vai na linha do conselho a escritores dado pelo russo Anton Tchekhov (1860-1904): "Não diga que a lua está brilhando. Mostre-me seu reflexo num caco de vidro".

Contar uma boa história inclui tratar do que escapa de quem olha para o óbvio,  a lua ou a espuma do mar. É quando escritor alerta para algo que, depois, parece até banal — aquela história do como é que não vi isso antes? 

Como compositor, Chico Buarque já fez isso diversas vezes. Ressaltou que a dor da separação fica ainda mais evidente no paletó que, no armário embutido, ainda enlaça um vestido; falou em adorar pelo avesso; previu que, daqui a milênios, futuros amantes quiçá se amarão com o amor deixado por um outro casal.

São tantas as canções que nos mostraram outras formas de ver e sentir o mundo. Depois da frase escrita no novo livro e que me foi destacada pela Thaís Velloso, ninguém vai olhar do mesmo jeito para alguma espuma no mar.