Por mais que se exalte o empreendedorismo e a iniciativa privada, não custa lembrar que, na próxima segunda-feira, passada a eleição, 80% dos alunos da Educação Básica e 75% de todos os que precisam de tratamento de saúde continuarão a depender desses serviços prestados pelo Estado.
É justo e importante que brasileiros busquem novas alternativas de crescimento profissional, que procurem montar seus próprios negócios, isso faz parte da ambição humana e da lógica do capitalismo.
A realidade brasileira também estimula iniciativas pessoais: formado na escravidão, o país tem um histórico complicado na relação com trabalhadores, muitos que têm carteira assinada recebem salários insuficientes, que impedem uma vida digna e confortável.
Mas é complicado achar que, de uma hora para outra, quase todos vão virar empreendedores de sucesso, que é suficiente ter uma boa ideia e muito entusiasmo para conseguir prosperar e ficar rico.
Os índices de fechamento de empresas após dois ou cinco anos permanecem altos e mostram que é preciso mais do que fé no coach e pé na tábua para alguém não depender de patrão ou de trabalhos eventuais.
O importante sonho do negócio próprio gerou, porém, um subproduto delicado, a ideia de que não é necessário, por exemplo, contribuir para a Previdência Social.
A tentativa de regulamentação da atividade de motoristas de aplicativos esbarra na grita de boa parte da categoria, que não concorda com a ideia de pagamento obrigatório para o sistema previdenciário.
Algo básico como esse tipo de contribuição acabou sendo apresentado com uma espécie de imposto que morderia ainda mais os parcos lucros dos que ralam ao volante.
É claro que não é bom sofrer qualquer tipo de taxação, os valores pagos a aposentados que trabalharam na iniciativa privada estão longe do ideal — mas o país já teria deixado de existir caso não houvesse o INSS, que gera uma renda fundamental para muitos brasileiros.
O mesmo serve para o SUS, o maior e mais abrangente serviço de assistência médica do mundo. Com todos os seus problemas, é o que garante atendimento para os três quartos da população que não têm como bancar planos de saúde.
A educação pública está longe do ideal — estados e municípios têm grande responsabilidade pelas falhas —, mas a solução não é acabar com essa obrigação por parte da sociedade.
Muito bem articulada e inflada por um viés religioso que vende o paraíso privatista, a campanha anti-Estado trabalha com o objetivo de desqualificar tudo o que é de todos nós.
Faz com que até mesmo aqueles que mais dependem dos serviços públicos passem a achar que, como ficarão ricos, serão capazes de viver sem respaldo estatal.
Uma solução ampla para problemas crônicos de saúde, educação, habitação e segurança precisa ser coletiva, não individual. Isso não implica na inexistência de parcerias com o setor privado, mas uma visão não excludente é fundamental.
E sempre é bom lembrar que muito do que é apresentado como resultado de investimentos particulares está também ancorado em benesses públicas.
Isso acontece com o agronegócio, que recebe incentivos fiscais, e com muitos hospitais, escolas e universidades privadas considerados de utilidade pública e dispensados de contribuírem para a previdência.
Quem adora bater no peito e dizer que não depende do Estado para nada costuma esquecer que abate gastos com saúde e educação no imposto de renda — toda a população subsidia essas despesas.
Fora os que usufrem da redução tributária gerada pelo Simples e pela não taxação de dividendos de suas empresas.
De um modo geral, os que mais se beneficiam das benesses estatais são aqueles que mais praguejam contra os serviços públicos e que defendem alternativas como a risível distribuição de vouchers para ensino e atendimento médico.
É evidente que o Estado brasileiro com frequência gasta mal e é dilapidado por uma histórica corrupção, algo que se reflete diretamente na qualidade de seus serviços. Mas destruir a máquina pública só beneficiará quem dela tanto usufrui de maneira indireta.