Por: Fernando Molica

Cid Moreira, a voz de Deus

Cid Moreira | Foto: Reprodução/TV Globo

Elis Regina disse que, se Deus cantasse, seria como Milton Nascimento — arrisco dizer que Ele, ao falar, teria a voz de Cid Moreira. Quem mais poderia dar todas as tantas  instruções a Moisés, ditar os dez mandamentos?

Sei que é fácil fazer essa analogia depois do sucesso das gravações que Cid fez do livro sagrado para cristãos e judeus. Mas o próprio fato de ele ter sido chamado para a tarefa já demonstra uma identificação entre sua voz e a do criador do Céu e da Terra.

Claro que essa identificação está relacionada a um deus criado pela cultura machista e autoritária: homem, patriarcal, vigilante, punitivo, onipotente, onipresente e onisciente, alguém que, no limite, deve ser mais temido do que amado. 

Mas convenhamos que esta é a imagem divina cultivada na maior parte do lado ocidental do mundo. A voz tornada familiar em todo o país a partir principalmente do fim dos anos 1960 é, digamos, a cara do Deus Pai representado por  Michelangelo no teto da Capela Sistina.

Aquele vozeirão de Cid já não cairia bem no papel de Jesus. Este, deus encarnado, era um andarilho, um ser humano, alguém que misturava aos povos. Como pregador, falava para multidões, mas era principalmente um cara de conversa, de pé do ouvido, de oração. Deve até hoje se surpreendenter com os que se esgoelam na hora de invocá-lo.

Competentíssimo, muito profissional — trabalhei com ele no Fantástico —, Cid era um craque na interpretação de textos. Escalado para ler a dura resposta de Leonel Brizola ao dono da Globo, Roberto Marinho, cumpriu a tarefa com jeito de quem recitava um catálogo telefônico.

Cid representava uma escola mais clássica da narração, a mesma de Hilton Gomes e Alberto Curi. A potência vocal de todos eles, além de impor respeito, era útil para contornar limitações técnicas de outrora.

Na bancada do Jornal Nacional, Sérgio Chapelin tinha uma narração mais informal e leve, menos dramática. Sua voz um pouco analasada e seu jeitão transmitiam uma ideia maior de conversa, de intimidade.

Ele poderia até ser usado para interpretar a criação do mundo narrada na Bíblia, mas daria lugar a Cid na transmissão do fim dos tempos.

O narrador que morreu no início de outubro acabou identificado com a ditadura militar. Não se pode atribuir a ele, porém, a pecha de colaborador, lia o que lhe era entregue, o que era permitido falar. Não tinha culpa se sua voz se afinava com a ideia de firmeza cultivada pelo regime autoritário.

O modo Cid de apresentar envelheceu com a chegada da democracia, momento de mais diálogo e de menos imposição, em que passou a ser exigido do âncora a capacidade de participar da elaboração do que iria ler.

Tempos em que desejar bom dia aos novos desafios da vida se tornou mais importante do que dar um boa noite que nos tentava fazer dormir apesar dos gritos que saiam dos porões.