Não é preciso ser especialista em leitura labial para constatar que, ao comemorar seu segundo gol contra a seleção peruana, Raphinha gritou alguns palavrões: dois deles direcionados para o público. Na Copa América, em junho, Bruno Guimarães fez parecido após Vinicius Jr. marcar um dos gols da vitória contra o Paraguai.
Não é incomum pronunciar palavras tidas como de baixo calão em momentos de desabafo ou de comemoração. Mas palavrões servem, principalmente, para reclamar e xingar. Dos três palavrões ditos por Raphinha e captados por uma das câmeras usadas na transmissão do jogo, um teve mais cara de expressão de alívio; dois foram lançados para quem pagou caro para ver o jogo no Estádio Mané Garrincha.
Aparentemente — só o jogador pode confirmar isso —, os xingamentos foram uma espécie de resposta às críticas que a seleção vinha recebendo. Maior alvo das reclamações da torcida e de boa parte dos jornalistas, o técnico Dorival Júnior reconhecia que o padrão apresentado pelo time era muito inferior ao que se espera de uma equipe como a nossa.
É normal que torcidas aplaudam e vaiem, isso é do esporte. Jogadores podem ficar chateados, mas é impressionante como alguns deles — pelo visto, é o caso do Raphinha — sintam-se acima das críticas, considerem-se injustiçados.
Parecem incorporar e reproduzir a lógica infantil do talentoso e instável craque Neymar, que, pela qualidade de seu futebol e por seus ataques de estrelismos e de não-me-toques, dá uma espécie de tom ranheta à seleção por mais de uma década.
Não tem jeito, Raphinha. As críticas são proporcionais aos ótimos e merecidos salários que vocês ganham. Vocês são os artistas em torno dos quais ocorre o espetáculo que move tanto dinheiro, é justíssimo que sejam muito bem remunerados (uma pesquisa rápida, aponta que você recebe 12,5 milhões de euros por ano, uns R$ 77 milhões, cerca de R$ 6,4 milhões por mês).
Nos últimos anos, talvez como reflexo de uma radicalização do culto ao individualismo, muitos jogadores da seleção parecem não admitir qualquer comentário negativo, fecham a cara, ficam chateados. Parecem esquecer que, com a camisa cinco vezes campeã do mundo, representam sonhos e expectativas de muita gente.
Durante muitos anos, a seleção era uma das poucas fontes de orgulho nacional, um dos maiores trunfos brasileiros na disputa internacional pelo chamado soft power, um poder suave que gera simpatia e negócios.
Algo que foi abalado por sucessivos fracassos em copas do mundo e por um distanciamento entre a população e os jogadores, que cada vez vão mais cedo para o exterior.
É justo que jogadores queiram aparecer em campo, mostrar talento, fazer gols, decidir jogos, tudo isso repercute favoravelmente em seus ganhos. Mas, na seleção, eles não podem esquecer que também representam muita gente. Mesmo que não estejam preocupados com isso, têm a missão de acabar com o sequestro da camisa amarela por um grupo político.
Os xingamentos de Raphinha ocorreram num momento em que a seleção parece ter encontrado um caminho e se mostra capaz de gerar mais empatia (sou suspeito para falar, mas os gols de Igor Jesus e de Luiz Henrique, do Botafogo, ajudaram muito nesse processo. Os caras moram entre nós, disputam o Campeonato Brasileiro, e não parecem ser arrogantes).
Somos livres para desabafar, mas é preciso ter cuidado para não magoarmos quem nos quer bem. A torcida brasileira está acostumada a ver no campo de futebol a sua melhor tradução, tem direito de cobrar, de reclamar — e de comemorar. E, apesar da falta de criatividade, do insuportável canto do muito orgulho e muito amor, não merece ser xingada.