Por: Fernando Molica

A guerrilha urbana que prosperou

Ônibus queimado no Rio | Foto: Vladimir Platonow/Agência Brasil

Justiça seja feita aos traficantes e milicianos que infestam e ameaçam implodir o país: eles põem no chinelo a atuação dos grupos radicais de esquerda que, durante a ditadura, tentaram implantar focos guerrilheiros no país.

Tais organizações jamais conseguiram dominar fatias do território nacional, nem mesmo bloquear com ônibus importantes vias de cidades como o Rio de Janeiro.

As ações mais visíveis desses grupos, como assaltos a bancos e roubos de armas e explosivos, não se constituíram em atos de guerra, mas de levantamento de fundos e de material para futuras batalhas. Os sequestros de diplomatas tinham o objetivo de libertar presos políticos submetidos à tortura.

A guerrilha do Araguaia foi sufocada ainda em sua fase embrionária. Tropas do Exército não economizaram na hora de matar e seviciar integrantes do PCdoB e moradores da região, acusados de colaborar com os guerrilheiros — as vítimas locais não tinham a menor ideia do que os "paulistas", como eram chamados, tinham ido fazer por lá.

Não vale dizer que a democracia e o respeito aos direitos humanos impedem que a polícia de hoje faça o mesmo trabalho sujo dos militares nos anos 1960 e 1970. Como ressalta o jornalista Elio Gaspari, durante a ditadura, as Forças Armadas copiaram a brutalidade do aparelho policial brasileiro.

A resiliência e o crescimento das mais variadas quadrilhas e organizações criminosas entre nós reforçam que a violência de agentes do Estado não é eficaz no combate aos tantos bandidos que agem em nosso país.

É mais razoável apostar em outro caminho: os que pegaram em armas para lutar contra a ditadura e implantar o socialismo pela via revolucionária eram adversários dos que controlavam o Estado. Representavam uma ameaça aos militares e aos seus cúmplices civis, como os empresários que financiaram a expansão da rede de torturas.

Já os traficantes e milicianos de hoje — para ficarmos em apenas duas das especialidades criminosas — atuam em colaboração com integrantes do Estado, não apenas policiais. Seria impossível que conquistassem tanta força, que acumulassem tantas armas e amealhassem tanto dinheiro sem a cumplicidade de representantes do poder convencional.

O suborno de um policial de rua é apenas a face visível e menor de esquemas grandiosos que corroem a estrutura institucional brasileira. A implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) em favelas cariocas provou o óbvio: o Estado era mais do que capaz de retomar territórios dominados por traficantes. Para isso sequer houve necessidade de grandes tiroteiros, bastava aplicar o conceito da dissuasão.

O projeto das UPPs acabou perdido pelo viés político-eleitoral e pelo renovado compromisso do Brasil com a exclusão social e pela tradicial parceria com o crime — é sempre relevante lembrar que muitas das grandes fortunas de nosso país foram formadas pelo tráfico de escravizados.

A atuação dos bicheiros, em particular, os do Rio, chega a ser caricatural, tamanho seu caráter didático na exposição de como o crime se infiltrou no Estado e tomou muitas de suas rédeas.

Em torno de algo lúdico e popular, foi criada uma rede de cumplicidade que corroeu boa parte da polícia, que naturalizou a corrupção, que se consolidou nos três poderes e criou laços com a iniciativa privada. Não se pode folclorizar uma atividade que, desde o início, promove incontáveis homicídios na dissuta pelo poder.

O Brasil corre o risco de, em pouco tempo, virar uma grande Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense onde, desde os anos 1970, integrantes ou representantes da família do bicheiro Aniz Abrãao David, o Anísio da Beija-Flor, praticamente se revezam no comando da prefeitura.

Não por acaso, o chefe do clã e outros integrantes da chamada cúpula da contravenção foram defensores e parceiros da ditadura — integram, desde então, um núcleo da guerrilha que vem dando certo.