O reconhecimento, por Guilherme Boulos (Psol), de que a esquerda deixou de falar com uma importante parcela da população não pode ser apenas um expediente semelhante ao utilizado por candidatos que passam a frequentar igrejas em campanhas eleitorais.
É importante que ele admita e verbalize esse descompasso, mas falta agora definir o que fazer. Hegemônico na esquerda, o PT foi criado a partir do crescimento de um movimento sindical ancorado nas grandes indústrias paulistas e em setores importantes e elitizados do funcionalismo público.
Oriundo do getulismo, Leonel Brizola adorava ressaltar a dificuldade que os petistas tinham de dialogar com setores que ficavam à margem do que chamava de elite do operariado.
Para chegar ao poder e exercê-lo, o PT amenizou seu discurso, mas manteve princípios baseados na luta de trabalhadores contra o patronato e na importância do Estado como empregador e indutor do desenvolvimento.
A guinada conservadora petista estimulou o nascimento do Psol, que ao bater pé na defesa do socialismo, estruturou-se como uma versão adolescente do PT. Atua muito como um filho revoltado que critica o aburguesamento do pai, outrora militante e radical.
Seu programa chega citar explicitamente o desencanto com o partido de Lula, fala nos que nele acreditaram mas que viram traídos lutas, sonhos e expectativas. As palavras "socialista" e "socialismo" são citadas 31 vezes.
A questão não é de abrir mão de princípios, mas de reconhecer que as relações de trabalho mudaram — na maioria das vezes, para pior, vale ressaltar. Mas por mais que o presidente da República tenha êxito em seu projeto de reindustrialização do pais, será impossível reproduzir o modelo consagrado há cerca de 60 anos e que garantia bons empregos e carreiras dentro da dura realidade brasileira.
Sem tempo para esperar por políticas públicas efetivas, boa parte dos brasileiros tratou de encontrar caminhos de sobrevivência, muitos deles precários, é só olhar para os jovens que arriscam as próprias vidas em motocicletas. A esquerda pode lamentar que, hoje, patrões sejam vistos por tantos pobres mais como modelo do que como adversários, mas tem que reconhecer o valor de quem parte pra luta.
A necessidade de se buscar alternativas fora do cada vez mais escasso emprego tradicional não pode ser visto apenas como algo temporário. Não se trata de uma epidemia individualista compatível com a teologia da prosperidade alardeada por tantos evangélicos.
Os baixos salários tradicionalmente pagos no país estimulam o empreendedorismo, ninguém quer ser condenado a ser pobre. E o Estado tem a obrigação de ajudar quem tenta crescer.
Há uma tendência que veio para ficar, compatível com outros fenômenos que já vinham se manifestando em setores da classe média, como a pejotização e o home office (este, muito estimulado pela pandemia). Dialogar com esses pequenos empreendedores não signfica ignorar o papel do Estado, de implantar o cada um por si.
É a máquina estatal que garante o SUS — o maior plano público de saúde do mundo — e o sistema de aposentadoria e pensões, que corre o risco de ser inviabilizado pela queda nas contribuições.
Vai ser preciso também comprar brigas com aqueles que xingam o Estado e dele historicamente se aproveitam. Nem mesmo o mais radical dos liberais ousa em falar na privatização da Codevasf, que irriga o patrimônio de tanta gente.
Será importante abandonar a postura professoral e arrogante de setores de esquerda; modelos teóricos com frequência não se encaixam numa sociedade sempre mutante. E vai ser preciso ouvir muito antes de falar.