Por: Fernando Molica

Notícia de uma eutanásia e de um voo

O poeta e letrista Antonio Cicero | Foto: Divulgação

A morte do poeta e letrista Antonio Cicero entristece e levanta questões éticas e morais para a sociedade em geral e, em particular, para médicos, psicólogos e jornalistas.

A eutanásia se difere do suicídio assistido: nesta última situação, a própria pessoa que decide morrer é responsável pela aplicação da substância que irá matá-la.

Não se sabe como foi o procedimento usado por Cicero, não convém entrar em detalhes, até para atender recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre prevenção de suicídios.

A mesma OMS indica que não se deve apontar uma única causa para a decisão de pôr fim à própria vida e não glorificá-la — o caso de um poeta que escolher não mais viver é bem delicado, remete a uma ideia de  romantização associada a esses artistas.

A OMS também prega a não publicação de cartas deixadas pela vítima. Tudo precisa ser relativizado, a carta-testamento de Getúlio Vargas é um documento histórico e político, seria inadmissível escondê-la.

Na bela, emocionante e sóbria carta deixada, Cicero não exalta a morte, deixa claro que amava a vida. Amava-a tanto que se viu incapaz de suportá-la com as limitações causadas pelo Alzheimer. 

A vida para ele ia além do ato de respirar, incluía a convivência com os amigos, a capacidade de escrever bons poemas e ensaios. Pressupunha a capacidade de lembrar — viver para contar, como escreveu Gabriel García Márquez.

E este conceito de vida remete aos cada vez mais sofisticados tratamentos que retardam a morte. Não é simples definir o fim da vida. Defensores dos transplantes insistem que isto se dá quando da morte cerebral, mesmo que o coração da vítima continue a bater: é quando a maioria dos órgãos têm que ser retirada.

Cicero mostrou que não lhe interessava viver se não fosse de maneira plena. Seu caso remete a uma dimensão de vida com ênfase na sanidade, capacidade de interação e de convivência consciente com o mundo. Viver seria, portanto, sinônimo de possibilidade plena de desfrute da condição humana.

Essa definição, porém, traz novas questões. Não seria digno dizer que uma pessoa com deficiências físicas ou mentais vive menos que outra. Não pode haver hierarquização da vida, ninguém é mais ou menos importante de que outro, o reconhecimento de diferenças e limitações é algo essencial em nossa humanidade. Qualquer brecha ou relativização deste princípio abre margem para a barbárie do nazismo.

É razoável alegar que cada um tem o direito de fazer o que bem entender com sua vida desde que não prejudique terceiros. Mas é inegável também que a vida tem compromissos com as relações que, de um jeito ou de outro, construímos. Nós somos também — ou, principalmente — o que vivenciamos com o outros, temos compromissos com eles.

Religiosos têm uma grande vantagem sobre os ateus ou céticos. São capazes de resolver tantos dilemas a partir do princípio da sacralização da vida, vista como um presente divino que não pode ser devolvido ou descartado.

Trata-se de uma posição digna, mas que não escapa de questionamentos práticos. Tamanha deificação da vida não é compativel com as injustiças existentes no mundo, inclusive com aquelas produzidas e incentivadas por aqueles que tanto dizem temer a ira que viria dos céus.

Ao optar pelo fim assistido de sua vida, Cicero tomou uma atitude racional, algo que, ao que tudo indica, não havia sido comprometido pelo Alzheimer. Certamente temia perder esta capacidade num futuro breve.

Não nos cabe julgá-lo, mas louvá-lo e guardá-lo em voo, como ele mesmo escreveu em um de seus poemas: "Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro/ Do que um pássaro sem voos".