A maior derrota da esquerda neste outubro não foi eleitoral, mas política: para ter chances de vitória, muitos de seus candidatos tiveram que abrir mão de posições históricas, desistiram de lutar pelo que defendem — na prática, deixaram de ser de esquerda.
Isso ficou mais evidente no campo do comportamento, em pautas como descriminalização do aborto e de drogas, mas também em questões econômicas, como um sim acrítico à pregação de um projeto ilusório de empreendedorismo simbolizado por Pablo Marçal — um sujeito que enriqueceu com a venda de falsas esperanças, o único produto que tem em sua prateleira.
Não há espaço nem mercado para que milhões de pessoas sigam o exemplo dele: haveria muitos ilusionistas oferecendo fórmulas mágicas de sucesso e poucos otários disponíveis para comprá-las.
Todo mundo tem o direito de tentar montar o próprio negócio, mas a ênfase no faça você mesmo comete a covardia de jogar no pobre a culpa por ser pobre. Como se a responsabilidade não fosse principalmente do Estado e da sociedade que negam à maioria dos cidadãos condições objetivas — educação, transporte, atendimento médico — para a construção de uma vida melhor.
Uma pobreza hereditária como a nossa está estruturada no modelo de país. Na nossa situação, o grito de "Pare de reclamar e empreenda!" é quase um sinônimo do "Se vira aí, mané". Os meritocratas gostam muito de comparar corredores bem alimentados e calçados com sapatilhas de corrida com famintos que entram descalços na pista.
A ascensão da extremismo bolsonarista foi decisiva no processo de endireitização da esquerda. O avanço e a aceitação popular de pautas radicais, muitas delas baseadas em medos e mentiras como a história do kit gay, reduziram o ânimo da esquerda de fazer o básico de uma luta política: contestar, argumentar, tentar mudar posições.
A sociedade brasileira engoliu uma reforma previdenciária que preserva privilégios de militares e de instituições privadas que se apresentam como não tendo fins lucrativos, comprou a versão empresarial e aceitou a redução de seus direitos trabalhistas. A esquerda berrou quando era oposição; voltou ao governo e tratou de não mexer nesses vespeiros.
É preciso reconhecer que Jair Bolsonaro nunca mudou suas pregações, soube nadar contra a corrente ao defender a tortura, a ditadura militar e a violência policial, ao zombar de pautas básicas dos direitos humanos. Uma agenda que acabaria embrulhada para presente por Olavo de Carvalho e transformada em farol por milhões de pessoas.
Diferentemente do que fez Bolsonaro, a esquerda demonstra não suportar o peso da oposição às suas próprias teses. Ao abrir mão da descriminalização de drogas, colabora para manter o preconceito e o encarceramento de jovens pobres, a grande maioria presa sem portar armas.
Ao abandonar o tema da descriminalização do aborto, a esquerda colabora para a manutenção de uma hipocrisia: a sociedade brasileira admite a interrupção da gravidez em qualquer caso, desde que seja na clandestinidade. Em 2021, 150 mil mulheres foram internadas no Brasil para tratar consequências de abortos, quase todos ilegaais. Mas, no mesmo ano, houve abertura de apenas 333 processos para apurar o que é considerado crime.
Ou seja, quase todos os que souberam de casos de aborto ilegal — feitos por amigas, filhas, primas, sobrinhas — não deram queixa na polícia; na prática, não consideraram que elas tenham cometido um crime. É bem provável que teriam outra atitude se soubessem que uma delas tivesse praticado um homicídio.
Dá trabalho explicar, convencer, lutar contra preconceitos, mas é necessário: isso é política, caramba. Ao deixar de tratar embates necessários, candidatos de esquerda abriram caminho para a eleição de oportunistas que se valem do discurso em defesa da família — de um modo geral, a própria família —, negaram o que pensam e demonstraram rendição ao que dizem contestar. As urnas demonstraram que o eleitor prefere uma direita que diz seu nome a uma esquerda que finge ser o que não é.