No rumo da normalidade eleitoral
O fanatismo de viés religioso foi decisivo para os atos ensandecidos antes, durante e - principalmente - depois da eleição de 2022. E tome de culto a pneu, de orações, de marcha soldado interpretado por cabeças de papel.
É cedo pra comemorar, mas resultados da eleição municipal apontam para uma normalização da política brasileira, vítima, há pelo menos dez anos, de terremotos como o impeachment de Dilma Rousseff, a Lava Jato e a prisão de Lula, o mandato de Jair Bolsonaro e a tentativa de golpe.
A sucessão de abalos quebrou algo que caminhava para uma rotina democrática e de alternância de poder. As jornadas de 2013 e 2014 mostraram uma insatisfação institucional que, num primeiro momento, foi adotada por setores radicais de esquerda e que acabou sendo surfada pela direita.
Incapaz de esperar pela eleição de 2018, parte da oposição partiu para o impeachment. O então grande PSDB, que já questionara as urnas eletrônicas em 2014, aliou-se a Eduardo Cunha para derrubar a presidente. A deposição de Dilma escancarou de vez o caminho para uma polarização sangrenta. Os tucanos, até então fortes candidatos ao Planalto, foram das primeiras vítimas.
A prisão de Lula e o comportamento bélico de Bolsonaro acabaram com uma espécie de primavera democrática do país. Brasileiros abraçaram o radicalismo, adversários passaram a ser encarados como inimigos, cada disputa eleitoral virou uma batalha decisiva entre a virtude e o pecado.
O fanatismo de viés religioso foi decisivo para os atos ensandecidos antes, durante e depois da eleição de 2022. E tome de culto a pneu, de orações, de marcha soldado interpretado por cabeças de papel. O que estava em jogo não parecia ser a Presidência, mas a possibilidade de danação eterna.
Até por seu caráter paroquial, eleições municipais contribuíram para baixar a bola. Com as devidas exceções, o eleitor demonstrou não ligar muito para disputa entre Lula e Bolsonaro. Os casos de Cuiabá (MT) e de Porto Alegre (RS) e as eliminações de candidatos de esquerda ainda no primeiro turno indicam a permanência do antipetismo, da lógica do tudo menos eles.
Porém, uma olhada mais atenta mostra que o eleitor votou em candidatos que mostraram algum serviço, prestou atenção nos próprios interesses e rejeitou os que considerava radicais (mesmo que, para isso, tivesse que escolher suspeitos de sempre).
Ao rejeitar a polarização, brasileiros sinalizaram uma possiblidade de volta à saudável rotina democrática, o direito de escolher A ou B sem temer que isso possa nos levar pro inferno ou pro exílio.
Não se tratou de uma vitória do inexistente centro, ectoplasma que zomba dos que neles enxergam características de equilíbrio e de equidistância. O que é assim classificado não passa de um largo grupamento político de características conservadoras — portanto, de direita —, mas que não costuma ter qualquer constrangimento de apoiar uma força de esquerda bem instalada no poder e que distribua cargos e verbas.
Venceram forças que tradicionalmente ganhavam eleições municipais no país. Não à toa que, com bancadas modestas numa Câmara dos Deputados que espelha a radicalização, PSD e MDB conquistaram, cada um, mais de 800 prefeituras. Os tantos prefeitos reeleitos não foram consagrados por integrarem o tal do centro, mas porque fizeram boas administrações, contaram com a máquina pública e foram beneficiados com o dinheiro fácil das emendas parlamentares.
Não dá pra prever se em 2026 será mantida a tendência de esvaziamento do desespero ideológico, mas 2024 deu algumas pistas. A perda de hegemonia de Bolsonaro na direita e na extrema direita e os impasses petistas talvez colaborem para que cada eleição deixe de ser vista como uma jornada ao fim do mundo.
Há sempre o risco de surgir um Pablo Marçal, mas não custa torcer pela volta do que a ministra Cármen Lúcia, presidente do TSE, chamou de "monotonia democrática".