Os órfãos das pautas da esquerda

Em 2018, há apenas seis anos, o programa da chapa à Presidência da República encabeçada por Boulos registrado no Tribunal Superior Eleitoral, tratava de maneira bem diferente de aborto e de drogas.

Por Fernando Molica

Quando foi candidato à presidência, Boulos defendeu legalização do aborto e de drogas.

Ao adaptarem algumas de suas pautas a tendências conservadoras da maioria da população, setores da esquerda não convencem quase ninguém e abandonam seus eleitores tradicionais.

Os casos de descriminalização do aborto e das drogas são exemplares. Na recente campanha, Guilherme Boulos (Psol), ao ser questionado sobre os temas, poderia ter ressaltado que são temas federais, não de prefeitos.

Preferiu, porém, dizer que é a favor apenas  das situações de interrupção voluntária de gravidez previstas em lei. Em relação às drogas, disse que defende a diferenciação de traficante de usuário, algo que também está na legislação e que foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (ainda que a decisão deixe margem para subjetividades por parte da polícia).

Em 2018, o programa da chapa à Presidência encabeçada por Boulos registrado no Tribunal Superior Eleitoral tratava dos temas de maneira bem diferente: "A descriminalização e legalização do aborto de forma segura e gratuita é uma das pautas a serem defendidas como condição de vida das mulheres cis e homens trans em nosso país", cravou.

A palavra "aborto" é citada oito vezes. O texto ressalta que o IBGE estima em 7,4 milhões o número de brasileiras que já fizeram pelo menos um aborto, cita que a Organização Mundial da Saúde calcula que um milhão de mulheres se submetem à interrupção insegura de uma gravidez no país. 

"O aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil, sendo que mulheres negras tem o dobro de chances de vir a óbito", diz o programa, que ainda cita ação movida pelo Psol no STF para decriminalizar a prática.

O mesmo em relação a drogas que, diferentemente do álcool e do tabaco — que, de longe, causam mais danos à saúde pública que as substâncias ilegais — têm comercialização e mesmo consumo proibidos entre nós.

A palavra "drogas" é mencionada 25 vezes no programa. O texto frisa o fracasso da chamada guerra às drogas e sua contribuição para o aumento da população carcerária, destaca que um em cada três presos do país responde por tráfico.

O programa lembra que, desses presos, boa parte é formada por "varejistas das substâncias ilícitas, presos em flagrante, sem armas, sem praticarem violência e sem vínculos orgânicos com organizações criminosas". 

Ressalta também que a proibição do uso de tais substâncias não reduziu seu consumo e fala de maneira explícita sua legalização: "(...) vamos propor uma lei que anistie as pessoas presas injustamente por tráfico de drogas e, por fim, fazer um processo gradual e seguro de regulamentação da produção e do comércio de substâncias hoje consideradas ilegais, a começar pela maconha." 

O texto fala na criação de programas de saúde e de assistência a usuários de drogas, mas reconhece também o "o direito individual ao uso recreativo" de tais substâncias.

É bem provável que se tivesse citado essas posições na última campanha, Boulos sequer tivesse chegado ao segundo turno. O problema é que, mesmo abrindo mão das propostas, ele manteve o mesmo percentual de votos de quando concorreu à prefeitura em 2020.

Pior: deixou de apresentar propostas que, embora polêmicas, precisam ser encaradas e discutidas com maturidade e não com base em chavões religiosos e fundamentalistas. Apresentá-las é fundamental para o debate — olho no olho, pra usar o mote do psolista. Ao negá-las, Boulos colaborou para demonizar ainda mais os que a elas se dedicam. 

Ao abrir mão de suas ideias, a esquerda como a representada pelo Psol perde parte da razão de existir. Como um carro atolado, acelera muito para não sair do lugar — até porque não faz sentido percorrer a mesma estrada da direita.