Por: Fernando Molica

Em Roma, o drible de Chico Buarque

Cenas da infância de Chico Buarque em Roma. Seu pai, o sociólogo Ségio Buarque de Holanda, desembarcou com a família na capital italiana em 1953 para lecionar na Universidade de Roma | Foto: Acervo pessoal

Nos primeiros 24 dos 29 capítulos de "Bambino a Roma" (Companhia das Letras), de Chico Buarque, o leitor tende a achar que a palavra "Ficção" impressa na capa não passa de um artifício do autor, forma de disfarçar uma espécie de coletânea de crônicas sobre sua vida de menino na Itália.

Com exceção de um ou outro detalhe — como a existência de dois irmãos homens, filhos do mesmo pai e da mesma mãe —, a biografia do narrador é coincidente com a do escritor, compositor e cantor. A data do nascimento é a mesma, seu pai é um historiador, autor de "Raízes do Brasil", que foi dar aulas numa universidade italiana em 1953. 

Ao longo de quase todo livro não dá pra diferenciar o narrador do Chico Buarque que conhecemos. São citadas a escola que, digamos, ambos frequentaram e detalhes como a sentida morte da irmã mais velha, a cantora Miúcha (1937-2018). A foto da capa é do menino Chico em sua bicicleta niquelada com pneus brancos.

Fica a impressão de que Chico quis apenas usar a palavra ficção como uma espécie de habeas corpus, licença para ser não obrigado a contar relatos verídicos e também para poder dar um tempero fantasioso a fatos de sua própria vida.

É o narrador mesmo que diz ter optado por não escrever um diário, já que no futuro a imaginação trataria de cobrir lacunas da memória, acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido. Compara seu eventual futuro livro de memórias ao efeito da umidade que  danificava o papel de parede que havia em seu apartamento: "Meu sonhado livro de memórias poderia ser bem isso, um papel de parede reproduzindo o que ele mesmo esconde."

A partir da página 135, o livro passa, porém, a justificar a tal palavra na capa. Surge uma outra narrativa, uma suposta volta do autor, adulto, a Roma. Ainda que com traços biográficos do próprio Chico, como o exílio italiano durante a ditadura, o que se vê é uma história que assume seu caráter ficcional.

Uma narrativa que dialoga com momentos anteriores do livro, mas que parece conversar principalmente com romances anteriores de Chico e com sua obra de compositor, em que volta e meia brinca com a realidade que apresentara.

Transparece aí o humor que fez Chico, em 2006, dizer que comprava suas canções — um de seus fornecedores era um tal de Ahmed, que "cobrou caro pra cacete!", afirmou em um DVD.

Apaixonado por futebol, Chico sabe o poder dos longos lançamentos, dos chutes diretos ao gol, mas também conhece o poder do acaso, do montinho artilheiro, e a capacidade de engano embutida num drible de verdade. "Bambino a Roma" é assim uma sucessão de dribles — e azar do zagueiro/leitor que acreditar que o ponta vai mesmo para onde indicou que iria.