O crescimento da votação de Donald Trump na comunidade latina indica que mesmo entre minorias discriminadas existe um grande percentual dos que adotam a lógica do farinha pouca, meu pirão primeiro.
Não foram poucas as ofensas e ameaças do ex e futuro presidente à população latina, com foco nos imigrantes ilegais. Mas, pelo jeito, boa parte dos cerca de 60 milhões de hispânicos dos Estados Unidos se consideram mais norte-americanos do que latinos, principalmente os que já estão legalizados ou nasceram por lá.
Os imigrantes ilegais nos EUA são em torno de 11 milhões, dos quais oito milhões originários de outros países das Américas. Por mais que haja laços étnicos, culturais e de parentesco nessa imensa comunidade é razoável admitir que a existência de algum grau de preconceito contra imigrantes entre os legalizados.
Nos Estados Unidos, a origem étnica é algo muito mais enfatizado do que por aqui — o racismo brasileiro é, principalmente, direcionado a negros e indígenas. Brancos não costumam ser categorizados de acordo com a origem de seus antepassados.
Lá, porém, o Rio Grande é mais embaixo. Bisnetos de pessoas nascidas num país da América Latina continuam a ser chamadas de latinas. Mas isso não quer dizer que esses cidadãos não se considerem, com toda a razão, tão americanos quanto os descendentes de ingleses.
Não se pode descartar que boa parte desses latinos aprove barreiras à chegada de novos imigrantes — o egoísmo humano não tem limites. É também possível que muitos desses norte-americanos, na hora do voto, pensem como seus conterrâneos e estejam mais preocupados com a inflação e com a taxa de juros do que com os que arriscam suas vidas para atravessar a fronteira que separa o México do suposto paraíso.
Em comentário reproduzido pelo site Poder 360, o analista Chuck Todd, da rede de TV NBC News, afirmou que o Partido Republicano, de Trump, tratou os eleitores latinos do mesmo jeito que fez com os trabalhadores brancos. Já o Partido Democrata, da derrotada Kamala Harris, preferiu considerá-los como grupo identitário — e isso teria sido um erro.
O raciocínio dialoga com uma declaração de Guilherme Boulos (Psol), que voltou a bater a cabeça dos 40% dos votos em eleição para prefeito de São Paulo. Numa entrevista a Mônica Bergamo, colunista da Folha de S.Paulo, o psolista afirmou que pesquisas qualitativas mostravam que ele, na campanha eleitoral, era identificado com a defesa dos mais pobres.
Mas, mesmo entre integrantes das classes D e E que faziam esta ligação, volta e meia aparecia uma ressalva: "Boulos defende o pobre. Mas eu sou empreendedora. Eu não sou pobre". O deputado admitiu não ter construído uma forma de se comunicar com quem "fica na moto 12 horas por dia para tirar no fim do mês o que paga de aluguel e contas e não se enxerga como uma pessoa pobre."
As mudanças no mercado de trabalho minaram a organização sindical e as expectativas de soluções coletivas, bases da luta de boa parte da esquerda, em particular, do PT. Acabou sendo construída uma saída de viés quase religioso, de salvação individual.
Mas, diferentemente do Reino dos Céus (que nunca terá lotação esgotada), não é fácil alcançar a riqueza na Terra. A chance de um pobre ficar rico é menor do que a possibilidade de um entregador de IFood ganhar R$ 100,00 de gorjeta.
Os democratas dos EUA e a esquerda brasileira estão aprendendo que cada um se vê de um jeito. Por mais que a grande maioria dos negros vote no partido de Kamala, não dá para desprezar desejos individuais. Mesmo com seu discurso violento, preconceituoso e excludente, a extrema direita tem conseguido fazer sonhar.