Ao indiciar 24 militares — entre eles, oito oficiais-generais —, a Polícia Federal deu um passo importantíssimo para acabar com a tutela que fardados teimam em exercer sobre o país.
A tradição intervencionista de militares é uma ameaça mais do que centenária ao país, espada que teima em permanecer sobre nossas cabeças.
A impunidade concedida aos torturadores da ditadura implantada em 1964 e o processo de abertura negociada contribuíram para manter a sombra das fardas em nosso país.
A falta de coragem do poder civil foi também determinante: sucessivos presidentes evitaram enfrentar o poder militares.
Fernando Collor de Mello teve ao menos a atitude de fechar o buraco, em base da Aeronáutica, que serviria para testes de bomba atômica. Dilma Rousseff desafiou a cumplicidade histórica dos quartéis com a ditadura para abrir a Comissão da Verdade — algo que seria decisivo para sua deposição.
Ela, porém, não levou adiante uma proposta de revisão do ensino nas academias militares que, a julgar por tantas demonstrações de oficiais, continuam presas ao preconceito ideológico e a uma guerra fria que há décadas deixou de existir.
O Supremo Tribunal Federal acovardou-se diante da ameaça feita pelo então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que foi ao Twitter clamar contra a concessão de habeas corpus para o então ex-presidente Lula.
A articulação golpista ocorrida no governo passado é resultado de tantas demonstrações de fraqueza. Jair Bolsonaro ex-capitão contou com a anuência de fardados para bagunçar as instituições militares, mandar às favas a hierarquia e o dever de lealdade à Constituição.
Pelo que apurou a Polícia Federal, não fomos conduzidos a uma nova ditadura graças à atitude de dois dos então comandantes das Forças Armadas, o brigadeiro Baptista Junior e o general Freire Gomes, que não aceitaram compactuar com a quebra da democracia (vale lembrar que o chefe da Aeronáutica era um ativo participante das redes sociais, onde curtia posts golpistas).
Ambos tiveram uma atitude louvável, mas o que assusta é que a oportunidade de intervenção tenha ocorrido, que Bolsonaro tenha se sentido seguro para tentar efetivar o que sempre alardeou fazer em toda a sua vida.
Só chegamos ao limite do rompimento porque oficiais deram corda para o golpe, cansaram de fazer ameaças à democracia. Foram cúmplices com manifestantes que ocuparam áreas de segurança militar — ficam diante de quartéis — para clamar pelo fim da democracia.
O indiciamento de tantos militares e as prováveis denúncias e condenações têm que servir como marco civilizatório. É preciso que o presidente Lula acabe com a lógica da conciliação e faça uma intervenção civilista nas Forças Armadas.
Comandantes militares têm que entender que não foram escolhidos por uma espécie de poder divino, ocupam cargos por delegação da sociedade que paga seus estudos, seus salários, suas fardas e suas armas. São funcionários públicos que devem obediência ao poder civil, eleito pela população.
É preciso reformular currículos, fazer com que militares chamem de ditadura a ditadura que durou 21 anos, que reconheçam os erros e crimes de antecessores — devem fazer isso pelo bem das instituições que pertencem ao povo brasileiro. Será necessário também rediscutir vantagens excessivas concedidas à categoria não por merecimento, mas por medo do fantasma golpista.
Só assim será possível estabelecer uma nova forma de convivência com os militares, discutir seu papel, redefinir suas funções num país que não tem tradição de confrontos com outras nações. Eles precisam bater continência para a sociedade.