PEC da Segurança: é preciso vigiar os vigias

O caso do assassinato, em 2018, da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes é exemplar. Praticamente todos os envolvidos - condenados, denunciados ou investigados - são ou foram agentes públicos.

Por Fernando Molica

Presidente Lula apresenta a PEC da Segurança a governadores

A proposta de emenda constitucional elaborada pelo governo para propor soluções para a segurança falha ao não criar novos mecanismos de controle da atividade policial.

Não se trata de colocar todos os policiais sob suspeição, mas de reconhecer o óbvio: nenhuma atividade profissional pode ser exercida sem controle.

Isso vale para motoristas de ônibus, pilotos de avião, médicos, advogados, políticos, engenheiros, operários, jornalistas, pedreiros, garçons, cozinheiros — e para policiais, que trabalham armados.

Neste último caso, a prática demonstra que, com exceção de casos mais notórios, as corregedorias — exercidas por outros agentes — tendem a dificultar a punição de colegas. É preciso que sejam idependentes.

Encarregado pela Constituição de exercer o controle externo da atividade policial, o Ministério Público também tem sido incapaz de cumprir com essa obrigação.

O caso do assassinato, em 2018, de Marielle Franco e de Anderson Gomes é exemplar. Praticamente todos os envolvidos — condenados, denunciados ou investigados — são ou foram agentes públicos. A presença na máquina estatal é que viabilizou suas atividades ilegais e lhes garantiu longos anos de impunidade.

Ronnie Lessa, o pistoleiro que atirou nas vítimas, era, até o ano passado, integrante da Polícia Militar. Seu companheiro de empreitada, Élcio Queiroz, havia sido expulso da corporação alguns anos antes, em 2015, depois de comprovada sua ligação com contraventores. Também implicado no caso, Maxwell Simões Corrêa integrou  o Corpo de Bombeiros até 2022, quando recebeu o cartão vermelho. 

Entre os denunciados como mandantes há um ex-chefe da Polícia Civil, um deputado federal e um ex-deputado estadual, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Um outro delegado teria colaborado com o grupo.

Três delegados da Polícia Federal são suspeitos de atuarem para atrapalhar as investigações; dois deles foram denunciados, acusados de plantarem pistas falsas.

O crescimento da violência faz com que boa parte da população, desesperada, caia na solução simplista e falsa de conceder mais e mais poderes para a polícia, uma saída espertamente estimulada por políticos que, muitas vezes, não escapariam de uma investigação mais apurada.

O problema é que a nenhum ser humano pode ser dado um poder ilimitado, ninguém pode ter o direito de matar quem bem entende. Todos temos que temer algum tipo de controle, e cabe a sociedade estabelecer esses mecanismos.

A entrega de cartas-brancas a policiais foi decisiva para a criação do Esquadrão da Morte e, mais recentemente, para o estabelecimento e expansão das milícias, quadrilhas geradas no ventre do Estado, particularmente entre policiais.

A proliferação de organizações criminosas — em especial, as dedicadas ao tráfico de drogas — não seria possível sem parceria com diversos níveis do aparelho público, não apenas policial.

A guerra entre herdeiros do jogo do bicho que assombra o Rio é, em boa parte, consequência da histórica parceria dos chefes dessas quadrilhas com a polícia, com autoridades e setores da iniciativa privada. Eles não acumulariam tanto poder sem estabelecer essas PPPs, parcerias público-privadas.

Não custa repetir: polícia violenta é, em quase todos os casos, sinônimo de polícia corrupta. Quem é autorizado pela sociedade a matar bandidos costuma aproveitar este poder para cometer outros crimes. De vez em quando, ainda acerta na testa de quem lhe deu tantos direitos.

A PEC ainda será discutida e modificada. Que os parlamentares criem maneiras de fazer com que policiais, tão essenciais, sejam subordinados à lei e à sociedade.