O país que tenta esquecer a ditadura

Sensível sem ser piegas, marcado por interpretações gigantescas de Fernanda Torres e de Fernanda Montenegro, o filme de Salles revela como a ditadura se entranha na vida de cada um, destrói vidas, contamina um país, distorce gerações.

Por Fernando Molica

Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva em "Ainda estou aqui"

"Ainda estou aqui" trata de memória e, de maneira complementar, de um país que optou pelo Alzheimer em relação à ditadura implantada em 1964. Diferentemente do que ocorreu com Eunice Paiva — vítima da doença nos seus últimos anos de vida —, uma boa parte do Brasil decidiu, de maneira voluntária e cúmplice, esquecer a barbárie, os 434 mortos, entre eles, 210 desaparecidos, caso do ex-deputado Rubens Paiva.

O longa-metragem sobre o sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de Paiva é pontuado por fotos de família e de imagens em movimento que simulam as captadas pelas antigas câmeras do formato Super 8. Insiste assim na importância de documentar, de lembrar.

Ao priorizar o cenário doméstico, a casa dos Paiva na avenida Delfim Moreira, no Leblon, reforça uma tendência ainda pouco explorada entre nós, a de mostrar a ditadura menos pela ação de seus agentes e mais pelo impacto na vida de suas vítimas.

"Ainda estou aqui" revela que, em diferentes graus, ninguém deixa de ser afetado pelo arbítrio. Há os que têm suas vidas destroçadas e os que lucram ao se associarem aos torturadores — muita gente enriqueceu ao fingir que não ouvia os gritos que vinham dos porões. Muitos empresários bancaram estruturas clandestinas da repressão.

É até comum ouvir de alguns imbecis que, durante a ditadura, só foram perseguidos e mortos os que trataram de arrumar confusão, assaltaram bancos, sequestraram diplomatas. Quem ficou quieto, não teria sofrido nada, havia até prosperado.

Por mais errada e mesmo suicida que tenha sido a opção de parte da esquerda brasileira pela tentativa de luta armada, vale repetir que não é crime combater a opressão — foi o que fizeram integrantes da resistência francesa diante da ocupação nazista. Engenheiro, Rubens Paiva tinha 40 anos e cinco filhos quando foi morto. Ele teve seu mandato de deputado cassado, fez oposição ao novo regime, mas não pegou em armas.

Foram os militares, associados a setores da sociedade civil, que romperam as regras do jogo democrático, depuseram o presidente constitucional e iniciaram a prática sistemática de torturas ainda em abril de 1964.

Um processo que afetaria a vida de todos os brasileiros. Impediu a prática sindical — e a consequente luta por melhores salários —, reforçou a desigualdade no campo, acelerou o extermínio de populações indígenas, estabeleceu a censura, impediu que brasileiros tivessem acesso a notícias, filmes, livros, peças de teatro, travou a renovação dos quadros políticos, fez com que muitos procurassem abrigo no exterior. 

Livres do controle do Judiciário, do Ministério Público e da imprensa, os governos militares tiveram liberdade para permitir e patrocinar desvios e escândalos bilionários.

Sensível sem ser piegas, marcado por interpretações gigantescas de Fernanda Torres e de Fernanda Montenegro, o filme de Salles revela como a ditadura se entranha no cotidiano de cada um, destrói vidas, contamina um país, distorce gerações.

Como uma bomba de efeito moral, o longa explode na cara dos covardes que veem coragem na atuação de torturadores — canalhas que espancam, estupram e matam pessoas subjugadas — e cobra das Forças Armadas uma atitude digna, de reconhecimento das barbáries cometidas no período.

A recente tentativa golpista que mobilizou setores importantes dos quartéis enfatiza a necessidade de os militares romperem com aqueles que mancharam suas fardas. A leniência com o passado compromete as instituições que eles tanto dizem amar.

O título do filme está no singular, mas deveria estar na primeira pessoa do plural. Ainda estamos aqui, não tememos contar histórias que são nossas. Não se pode desaparecer com a história, que permanece viva, que se manifesta nem que seja numa discretíssima reação de uma idosa que, isolada do mundo, ainda é capaz de se emocionar quando se depara com referências ao seu — nosso — passado.