Drogas: a experiência portuguesa precisa ser olhada por aqui

O crescimento do poder e a diversificação de investimentos das grandes organizações criminosas brasileiras mostram a inutilidade do combate feito por aqui, baseado em apreensões pontuais e em sucessivas operações em pontos de venda de drogas em favelas.

Por Fernando Molica

João Goulão com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski

Um dos idealizadores da política portuguesa de drogas, o médico João Goulão indicou um caminho para o impasse sempre colocado entre a descriminalização do consumo e a manutenção do crime de tráfico. Afirma que, por lá, com o fim da repressão aos consumidores, a polícia pôde se concentrar no combate às grandes organizações criminosas.

Goulão, que esteve no Brasil e se reuniu com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse à Folha de S.Paulo que as apreensões de grandes quantidades de drogas aumentaram muito desde que foi a abandonada a perspectiva de buscar os pontos de venda a consumidores.

O foco, explicou, passou a ser no acompanhamento de movimentações de capitais e as grandes fortunas.

O crescimento e a diversificação de investimentos das organizações criminosas brasileiras mostram a inutilidade do combate feito por aqui, baseado em apreensões pontuais e em sucessivas operações em favelas. Incursões que apenas procuram mostrar serviço.

Em Portugal, desde 2001 deixou de ser crime consumir qualquer droga. Segundo Goulão, o que interessa por lá não é substância, "mas o indivíduo que a consome". "Substâncias são isso mesmo, substâncias. O que interessa é o comportamento de quem as usa", frisou, ao ser perguntado pela decisão do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar, entre nós, a posse de pequenas quantidades de maconha.

Presidente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências de Portugal, o médico lembrou que as drogas não foram legalizadas e sua posse continua a ser punida de maneira administrativa, como infrações de trânsito — afirmou, em outra entrevista, a O Globo. Mas destacou que, neste caso, o usuário não é fichado criminalmente, algo que, antes, dificultava seu acesso ao emprego e poderia levá-lo à prisão.

A mudança na política envolveu a criação de um sistema de tratamento de dependentes. A experiência é complexa, não se trata de algo mágico. Ele mesmo admite que houve, nos últimos anos, aumento de consumo de drogas nas ruas, o que assusta setores mais conservadores e estimula reações de algumas forças políticas.

Mas os resultados positivos superam os negativos. O atendimento aos dependentes é influenciado por cortes em políticas sociais, a pandemia de covid 19 gerou mais problemas, a crescente população de rua tende a consumir mais essas substâncias. Mas as mortes por overdose, por exemplo, caíram 80% entre 1999 e 2015.

Não seria fácil transplantar de maneira mecânica para o Brasil, com 212 milhões de habitantes e com graves carências sociais, um modelo implantado num país muito menor, onde vivem cerca de 11 milhões de pessoas. Por lá, o padrão de vida médio é bem superior ao nosso, investimentos da União Europeia e decisões políticas permitiram a formação de uma sociedade muito mais equilibrada, sem as diferenças gritantes como as nossas. Não é por acaso que tantos de nós migraram para lá nos últimos anos.

Entre legalizados ou não há cerca de 600 mil brasileiros em Portugal — há os que vivem muito bem, outros que são discriminados e tantos que passam por enormes dificuldades.

Mas entre os tantos relatos que recebemos praticamente não ouvimos falar em horrores em relação a eventual abuso de drogas nas ruas (estive em diferentes áreas de Lisboa em fevereiro, não vi nada que pudesse remeter a uma de nossas cracolândias).

Vale insistir: não dá para simplesmente transferir a experiência portuguesa em relação a drogas, mas é irresponsável ignorá-la. E é preciso reconhecer que o nosso modelo falhou, serve para produzir violência e morte entre os pobres e para enriquecer traficantes de armas e de drogas. É preciso olhar além-mar, admitir erros e buscar soluções mais ousadas.