Por: Fernando Molica

Vídeo revela DNA autoritário das Forças Armadas

Vídeo deveria gerar a demissão do comandante da Marinha | Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O inadmissível, arrogante, vergonhoso, ofensivo, tosco e caricatural vídeo institucional da Marinha revela que o maior problema das Forças Armadas não está no CPF ou CNPJ das corporações, mas em seu DNA. Boa parte dos militares brasileiros se acha acima da população e não admite perder seus privilégios — pagos com o dinheiro daqueles que, no filme, são apresentados como vagabundos.

Porta-voz dos quartéis, o ministro da Defesa, José Múcio, tem procurado esvaziar o golpismo entre os fardados. Repete que os crimes a eles atribuídos são pessoais e não comprometem as respectivas forças: daí sua versão de que o problema é nos CPFs de alguns militares, não nos CNPJs das corporações.

O problema é que os fatos conspiram contra essa versão. O vídeo é mais um elemento que demonstra a teimosia de militares, incapazes de admitirem a necessidade de se submeterem às normas definidas pela maioria da sociedade, e não o contrário. O filme é uma afronta ao poder civil representado pelo presidente Lula e deveria gerar a imediata demissão do comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen.

Com exceção de algumas imagens que mostram a Marinha exercendo tarefas de defesa civil, o vídeo mostra apenas treinamentos, o que é normal num país sem qualquer disputa crônica com outras nações. Por aqui — e é ótimo que seja assim — as FFAA exercem, principalmente, tarefas preventivas e de vigilância. Há também funções auxiliares, como construção de estradas, resgate de brasileiros no Líbano, ajuda emergencial na segurança.

É bem provável que a falta de oportunidade para que exerçam sua função básica — a guerra — colabore para aumentar a arrogância e, mesmo, a frustração dos militares. Como atores que nunca estreiam, podem alegar uma competência que, na prática, não é testada há décadas.

A sociedade não pode aceitar o vídeo postado pela Marinha. Militares não têm o direito de desprezar os civis, não podem nos equiparar a pessoas que só se divertem. Isto, num país ainda tão pobre, com tanta gente que trabalha muito para conseguir sustentar suas famílias — gente que nem de longe tem estabilidade no emprego, não pode deixar pensão para filhas que se dizem solteiras e nem se aposentar aos 45 anos de idade. A ida para a reserva antes dos 50 anos só é possível graças à contagem de tempo em escolas de formação equivalentes do Ensino Médio: seus alunos ainda recebem remuneração mensal.

Há tempos que a Marinha exerce uma papel fundamental no programa nuclear brasileiro, mas cometeu alguns desastres. Em 2000, deixou um submarino afundar no cais — havia uma escotilha aberta — e comprou o porta-aviões "Foch", uma lata velha que precisou ser afundada em 2023, não servia nem para sucata.

O vídeo não mostrou as imagens desses tropeços, como também escondeu o patético e ameaçador desfile de tanques que espalharam fumaça diante do Palácio do Planalto em 2021, numa clara ameaça ao Congresso e à democracia.

As FFAA devem satisfações e desculpas ao povo brasileiro pela ditadura que, apoiada por lideranças civis, implantaram em 1964. A retratação é essencial para encerrar a cumplicidade histórica com o período autoritário que contamina o histórico das forças e para acabar de vez com a tentação golpista que volta e meia reaparece nas casernas.

O filme revela que nem o indiciamento, por envolvimento na trama golpista, do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, foi suficiente para constranger a força. Seu sucessor, além de, ao que tudo indica, aprovar o vídeo, não se cansa de reclamar mais verbas, mesmo de forma pública, em solenidades diante do presidente da República.

Mas não dá para discutir orçamento militar sem levar em que conta que, no Brasil, até 85% desse dinheiro vai para gastos com pessoal, algo inimaginável em países da Otan.

O presidente Lula não pode deixar passar mais esta afronta — o filme, que precisa ser retirado das plataformas, representa uma manifestação de viés político, algo vedado aos militares. A não demissão do comandante da Marinha representará outra demonstração de fraqueza daquele que é o comandante das Forças Armadas.