Até por reconhecer um dos princípios básicos da literatura — a capacidade de gerar empatia com o outro — prefiro falar em lugares, e não em lugar de fala. Isso torna a expressão menos restrita e determinante, não define quem pode falar o quê.
A dominação branca e masculina que sempre se refletiu no processo de criação artística hegemônico criou uma distorção que, aos poucos e muito lentamente, começa a ser corrigida. A chegada de novas e necessárias vozes não implica substituições, mas acréscimos.
Isso tudo tem a ver com "De onde eles vêm", o novo romance de Jefferson Tenório lançado pela Companhia das Letras. Autor do ótimo "O avesso da pele", ele traz um outro protagonista negro, Joaquim, um jovem pobre, morador de Porto Alegre que quer ser escritor e chega à universidade graças ao sistema de cotas.
Aviso que ainda não terminei de ler o romance, que vai muito além da discussão de políticas inclusivas e compensatórias. Num ótimo drible a expectativas reducionistas do leitor, o título do livro surge a primeira vez ligado ao exercício da literatura: "De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm?"
Ao longo da narrativa acompanhamos um processo de transição semelhante ao narrado em entrevistas pelo escritor francês Édouard Louis, uma das atrações da última Flip, o difícil trajeto entre uma vida pobre, sem expectativas de ascensão, e um universo construído para manter tudo do jeito que sempre foi.
E aí vem a história dos lugares de fala. Há momentos em que são apresentados diferentes olhares, todos, até onde eu li, legítimos, mas contraditórios. Em duas passagens, Elisa, a namorada branca de Joaquim, vai tirar satisfações num quilombo ao lado de sua casa, reclamar do cachorro feroz dos vizinhos que invadira seu quintal.
Na primeira vez, ouve da idosa quilombola que seu cão não invadira nada, "ele só entra no que é dele". Na segunda investida, Elisa diz que jamais fizera mal aos quilombolas. E recebe outra resposta dura: "Você só precisa existir pra me fazer mal, moça".
Os episódios iluminam o que talvez há de melhor na boa literatura, o confronto de duas razões. Elisa está certa ao reclamar do cachorro; Iarema, a quilombola, também age corretamente ao, com seu argumento, resgatar o massacre e a herança da escravidão — os brancos é que são os invasores.
Negro como Iarema, ainda tateando num universo branco que reforça sua exclusão — não tem dinheiro para sair para beber com os amigos da namorada —, rompido com a tradição religiosa de matriz africana da avó, Joaquim se questiona, procura se situar. Tenta encontrar um lugar que parece não existir, que precisa ser desbravado numa sociedade acostumada a determinar onde cada um pode ficar.
A necessidade dessa busca ressalta a importância dos muitos lugares de fala. Homem e negro, Tenório enfatiza as dúvidas de Joaquim, mas não ignora nem despreza as de Elisa, tão relevantes quanto as dele; o fato de ser branca não a impede de sofrer, de se angustiar, de buscar uma vida melhor. A autor sabe disso, e procura traduzir o olhar da personagem.
Nada impediria também que história semelhante fosse escrita por uma mulher, branca como Elisa, que tratasse Joaquim na terceira pessoa. Seria outro romance, provavelmente com outro enfoque, não necessariamente melhor ou pior — autores são diferentes entre si, independentemente de cor, gênero ou orientação sexual. O fundamental é ter, cada vez mais, diferentes olhares e versões.