Por: Fernando Molica

O mais fiel e inegociável dos amores

Jogadores alvinegros com taças do Brasileiro e da Libertadores. | Foto: Vítor Silva/Botafogo

O mundo seria mais pacífico se dedicássemos ao outro pelo menos uma parcela do amor, da compreensão e da capacidade de perdão que temos por nossos times. O amor por um clube é talvez a mais antiga da paixões não obrigatórias (pai, mãe, avós, irmãos), e o mais inegociável, casamento indissolúvel - não se admite divórcio, separação, troca de cores, por mais que nos faça sofrer.

A adesão a um clube costuma vir por influência da família direta, principalmente do pai. Mas há casos em que a identificação é incentivada por um outro parente, por um amigo. Há também episódios de amor à primeira vista, da criança que, um dia, declara torce por um determinado time, e ponto.

Questões conjunturais contribuem para a opção, equipes que ficam muito tempo na fila de títulos tendem a conquistar menos torcedores, meninos ou meninas que, diante de uma sucessão de fracassos, resolvem adotar outra camisa. Acontece.

O mais importante, é que não costumamos nem saber porque torcemos por esse ou aquele time. Fica parecendo que nascemos assim, que não houve dúvida ou alternativa: "Não escolho, fui escolhido", como costuma cantar a torcida do Botafogo.

Com o tempo, passamos a nos identificar com características supostamente típicas da torcida que virou nossa.Há características históricas ou culturais, os italianos do Palmeiras, os portugueses do Vasco, a identificação popular de  Corinthians, Internacional, Flamengo ou Santa Cruz; o elitismo tricolor de Fluminense, São Paulo e Grêmio.

Esses traços deixados pelos fundadores não explicam tudo, modificam-se com o tempo, mas são indeléveis, mantêm-se como o batismo católico, uma espécie de tatuagem na alma que jamais poderá ser apagada . E aí chego ao Botafogo, clube fundado por um bando de garotos do Largo dos Leões, no Humaitá, aqui pertinho de casa.

Por mais que, nós, alvinegros, fiquemos velhos, não perdemos as espinhas que certamente brotavam na cara daqueles rapazolas que resolveram criar um clube de futebol. Daí talvez nossa inconstância, dramaticidade, esperança e pessimismo, nossa capacidade de circular pelo inferno quase ao mesmo tempo em que damos voltinhas pelo paraíso. Quer algo mais adolescente do que a variação de humores de 2023 para 2024?

Em 30 de novembro de 2023, publiquei no meu blog um a crônica intitulada "O Botafogo ou a vida", em que refletia sobre a tragédia representada pela perda do título brasileiro que era praticamente nosso. No texto, eu falava da necessidade de ter um afastamento do time, até por questões básicas de sobrevivência: "É quase impossível combinar racionalidade e fé, mas é preciso tentar não se tornar escravo de um culto que teima em ressaltar minhas limitações e meus fracassos, que me puxa para um abismo", escrevi.

Ainda disse acreditar que o Botafogo, um dia, iria ressuscitar; como no mito de Xangô, sobreviveria ao próprio suicídio. O renascimento veio de forma mais rápida do que pensei. Exatamente um ano depois, eu e meus filhos estávamos em Buenos Aires comemorando a inédita Libertadores; oito dias depois, faríamos outra festa no Nilton Santos. 

Clubes nascem de um projeto comunitário, mas depois ultrapassam limites de bairros, cidades, estados; passam, com suas qualidades e defeitos, a pertencer aos seus torcedores, que neles projetam suas próprias características, formam estranhas confrarias.

A torcida do Botafogo é talvez a única no mundo que tem um cântico que, embalado por uma melodia triste, remete ao fracasso: "Momentos ruins eu já vivi...": uma pista do quanto somos complicados. A lógica do preto e do branco contribui para isso, a tensa convivência entre a ausência de cores e a soma de todas elas, padrões que não se misturam, ficam ali, um olhando desconfiado pra cara do outro - cabe a cada um nós conviver com esse destino iluminado pela estrela, como disse Armando Nogueira, somos um time que tem como símbolo algo criado por Deus. Não é pouco.