A prisão do general de quatro estrelas Braga Netto quebra um tabu, tem caráter pedagógico, mas cairá no vazio se não houver uma profunda reformulação no processo de formação de militares no país.
Por mais que comandantes do Exército e da Aeronáutica tenham se posicionado contra um golpe, é inegável que, ao longo do mandato de Jair Bolsonaro, muitos oficiais demonstraram, no mínimo, simpatia pelo desrespeito à democracia.
Foram muitos os episódios em que comandantes militares fizeram ameaças explícitas ou veladas à ordem constitucional. Emitiram diversas e dúbias notas oficiais sobre respeito à democracia (algo desnecessário numa democracia consolidada), participaram da tentativa de desmoralização das urnas eletrônicas, aceitaram transformar áreas diante de quartéis em focos golpistas.
A tolerância com esquemas de corrupção criados, mantidos ou renovados durante a presença de Bolsonaro no Planalto apenas reforçou que o ódio ao PT e à esquerda não tinha nada a ver com os casos de corrupção investigados pela Lava Jato: o grito "Se gritar pega centrão/ Não fica um, mermão", entoado pelo general Augusto Heleno ficou parado no ar.
Militares não engoliram a Comissão da Verdade criada pela ex-prisioneira política Dilma Rousseff. Até hoje resistem em usar a palavra ditadura ao se referirem ao período, falsificação histórica que revela tolerância e cumplicidade tardia com os abusos. É impossível confiar em quem não admite o óbvio.
Militares tendem a achar que fazem parte de elite intelectual e moral do país. Jogam para o terreno da política estratégias e conceitos que, pela ausência de conflitos internacionais, não testam no campo de batalha. Na falta de inimigos de verdade, cultivam inimigos internos, como aqueles que pagam seus salários pudessem ser considerados adversários.
O preconceito contra a esquerda tem como uma espécie de marco referencial a desastrada tentativa revolucionária liderada por comunistas em 1935. A guerra fria nascida com o fim da Segunda Guerra Mundial e revigorada entre nós a partir de 1964 demonstra continuar viva em fardas e pijamas — é como se o Muro de Berlim não tivesse caído e a União Soviética ainda existisse.
Há uma insistência oficial em separar militares golpistas de suas instituições, o problema é traçar com alguma exatidão essa linha. O histórico das três forças demonstra a presença de uma cultura golpista que remonta à deposição do Império e à implantação da República.
O assanhamento de fardados com a possibilidade de um nova ruptura, o apelo por quebra da institucionalidade vindo de boa parte da população e os melindres que afloram a cada discussão sobre privilégios nas FFAA mostraram que o Brasil não se livrou da tutela militar.
O desaforo da Marinha ao lançar vídeo que desafiava medidas do governo é outro caso que mostra a necessidade de uma mudança radical nas relações com os servidores públicos fardados.
É preciso, de cara, reexaminar o currículo das escolas militares e deles expurgar qualquer tipo de preconceito, inclusive ideológico. A história admite diferentes versões, mas não dá pra negar que golpe é golpe.
Outro ponto é discutir privilégios da carreira militar. Será preciso levar em conta algumas especificidades, mas não é razoável que alguém se aposente aos 45 anos de idade. Não dá também para que gastos com pessoal consumam 85% do orçamento das forças.
Essa baixada de bola será fundamental para que, enfim, o Brasil possa discutir uma política de defesa que não seja consequência de uma imposição dos oficiais-generais. Cabe aos cidadãos, via Executivo e Legislativo, discutirem pontos como contigente e armamento de forças, que precisam entender que existem em função da sociedade, não o contrário.