Por: Fernando Molica

Aviso aos bandeirantes: olha a milícia aí, meu!

Se não tivesse morrido em 2021, o locutor Januário de Oliveira poderia lançar um "Taí o que você queria!" na direção do governador paulista, Tarcísio de Freitas. Isto, diante da prisão de cinco PMs suspeitos de extorquirem comerciantes no Centro de São Paulo.

A corrupção policial é uma espécie de subproduto do estímulo à violência dos agentes, algo tão previsível quanto denúncias de bandalheiras na Codevasf.

Não se pode dar poder ilimitado a qualquer pessoa, a qualquer profissional, médico, pedreiro, motorista de ônibus, jornalista, engenheiro, advogado, babá. Todos devemos temer algum tipo de controle.

Isso é ainda mais grave quando tratamos de quem tem o direito de andar armado. Na prática, o governo paulista autorizou a polícia a cometer o mais grave dos crimes, o de tirar a vida de alguém.

Cada policial passou a ter o direito de investigar, julgar e punir com a pena de morte qualquer pessoa, principalmente os pobres e pretos, suspeitos de sempre.

Alguém autorizado a matar tende a se sentir livre também para extorquir, roubar, traficar drogas e armas, para aliar-se a organizações criminosas, como no caso de policiais presos, acusados de cumplicidade com o PCC.

A história recente do país está cheia de casos assim. No fim dos anos 1960, a criação do grupo de Homens de Ouro da polícia do então estado da Guanabara serviu de berçário para o Esquadrão da Morte, para quadrilhas especializadas em extorsão e até para a tentativa de migração de um deles, Mariel Mariscot, para o jogo do bicho.

A milícia que controla boa parte do território fluminense nasceu dentro da máquina do Estado. Muitos dos futuros integrantes dessas quadrilhas eram policiais acostumados a fazer segurança clandestina para comerciantes em áreas violentas das cidades.

Eles perceberam que ganhariam mais se invertessem a relação; como bons empreendedores, passaram a ser donos dos esquemas de proteção, e começaram a exigir dinheiro dos antigos patrões. Essas estruturas criminosas brotaram e cresceram graças à tolerância do Estado, disposto a terceirizar parte da briga contra o crime: então prefeito da capital, Cesar Maia chegou a classificá-las de "autodefesas comunitárias".

Num primeiro momento, boa parte da população também apoiou os milicianos, muita gente dizia com orgulho que no seu bairro ou na sua favela não havia mais traficantes. Todos haviam sido mortos ou expulsos pelos policiais que passaram a se encarregar da segurança na área em troca de uma pequena contribuição.

A tolerância com a lógica do bandido bom é bandido morto foi decisiva para o crescimento dessas organizações. Seus integrantes faziam o que era considerado certo por muitos — eliminavam os que, para eles, eram criminosos.

Com o tempo, passaram a exigir mais e mais dinheiro dos moradores, monopolizaram a venda de botijões de gás e serviços como transporte alternativo, fornecimento de luz, de TV por assinatura e acesso à internet. Alguns se associaram aos traficantes, outros disputam o direito de vender drogas.

Donos de um poder cada vez maior, milicianos passaram a dominar outras áreas, a conquistar influência em governos e em estruturas partidárias.

Gerados dentro da máquina estatal, exibiam grau de instrução superior ao dos bandidos comuns, tinham amigos em repartições e em gabinetes. Não demorou para elegerem seus representantes para a Assembleia Legislativa e para câmaras municipais. Alguns milicianos também foram eleitos.

O paulista não precisa de bola de cristal para saber o que acontecerá por lá se a licença para matar continuar a ser renovada — basta ler as notícias sobre o Rio. Sinistro, muito sinistro, como também dizia o Januário.