Comecei a acumular milhagem em shows do pessoal do Clube da Esquina a partir de outubro de 2018, poucos dias antes do segundo turno da eleição. Foi quando fui ao Circo Voador assistir a uma apresentação do Lô Borges — algo que, na época, representou um réquiem da democracia.
Estava evidente que a eleição seria vencida por um deputado que tinha um torturador como herói, defendia a ditadura implantada em 1964, propusera guerra civil e fechamento do Congresso, pregara o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso e da "petralhada", comparara parentes de desaparecidos a cães que procuram ossos.
Não se tratava de uma simples disputa entre direita e esquerda, algo normal e desejável numa democracia. É essencial que teses mais pra lá ou mais pra cá sejam oferecidas à população de maneira previsível e regular — e que vença quem tiver mais votos.
Em 2018, porém, não havia uma disputa como as do PT contra o PSDB (ou mesmo, contra Fernando Color de Mello). O Brasil estava prestes a entronizar um ex-capitão que não escondia suas posições, que tivera sua passagem pelo Exército marcada pela indisciplina.
Um oficial convidado a se retirar da Força após um processo em que chegou, na primeira instância, a ser condenado por articular um plano terrorista que incluía a colocação de bombas em quartéis.
Um homem que negava conquistas civilizatórias essenciais e negava o simples e óbvio reconhecimento de direitos básicos de cidadãos que pagam impostos, independentemente de sua cor, etnia, religião e orientação sexual.
O show de Lô Borges, assim, era algo deslocado, remetia não ao futuro, mas nos jogava no passado, à ditadura — o disco Clube da Esquina foi lançado em 1972, no auge da repressão.
Aqueles jovens mineiros, de um modo geral, não batiam de frente com o autoritarismo de maneira tão explícita. Há, naquele que é um dos melhores álbuns do mundo, versos que podem ser lidos como referências aos tempos tão duros: "Que notícias me dão dos amigos?/ Que notícias me dão de você?" ('Nada será como antes', Milton Nascimento e Ronaldo Bastos).
Mas os sócios daquele clube que criou um movimento tão belo e singular, que de certa forma refletia a posição geográfica de Minas Gerais — no centro do país —, falavam principalmente de temas mais etéreos, ligados à liberdade e, mesmo, a experiências sensoriais, trens azuis, girassóis da cor do cabelo da amada.
Cercados de montanhas e de ditadura, tratavam de juventude, de prazer — amar em meio à repressão é também uma forma de protesto. Em 1979, a canção 'Clube da esquina nº 2' (Milton e Lô) ganharia letra mais explícita de Márcio Borges, citava "tantos gases lacrimogênios" e reafirmava os sonhos que não envelhecem.
Ouvir essas canções nos anos 1970 representava acolhimento, consolo, expectativa de dias melhores. Em outubro de 2018, elas cantavam uma derrota anunciada. Não de um candidato, isso é o de menos, mas da esperança. Eram os canhões que, mais uma vez, venciam as flores.
Jair Bolsonaro não enganou ninguém, e, ao longo de seu mandato, procurou cumprir todas as suas promessas. A julgar pelas investigações, até golpe tentou. Em 2019 e 2020 bati cartão em apresentações de Milton no Rio, era preciso aproveitar a que seria a penúltima de suas turnês.
Fui agradecer a beleza que nos proporcionou e o compartilhamento da utopia ligada a um país que, poucas décadas antes, acreditávamos que renasceria do fundo de uma longa noite.
Em 2022, voltei a um show do Lô Borges, desta vez no Teatro Rival. Ali as canções indicavam um novo sentido, mais próximo do original, viagem de ventania. Há pouco mais de uma semana, fui vê-lo de novo, ele e Beto Guedes se apresentaram na Arena Jockey.
Agora não houve angústia ou expectativa, o que marcou mesmo foi a beleza e a força de tantas canções que dialogam com o país, com a história e com os sentimentos de cada um, que ajudaram a segurar tantas ondas. Esquina mais de um milhão, gente, gente, gente.