Por: Fernando Molica

A Macondo de cada um dos leitores

Marco González (José Arcádio Buendía) e Susana Morales (Ursúla Iguáran) em "Cem anos de solidão) | Foto: Divulgação/Netflix

Tem sido comum ler em redes sociais depoimentos de pessoas que comunicam a decisão de passar ao largo da série "Cem anos de solidão", que estreou este mês na Netflix.

O motivo, em geral, é o mesmo: alguns temem se decepcionar com a versão audiovisual do maior clássico de Gabriel García Márquez. Dá até para perceber os que comparam o ato de assistir à série a uma espécie de traição ao romance que tanto marcou suas vidas e seus sonhos. Seria quase como quebrar um encantamento.

O jornalista e cartunista Celso Augusto Schröder foi mais original. Disse que ainda não resolveu se vai acompanhar a série — contou que ficou melancólico quando sua leitura do livro se aproximava do fim, percebeu que nunca mais teria a chance e o prazer de lê-lo pela primeira vez.

Os depoimentos reforçam uma verdade que, às vezes, é vista como apenas um chavão, a de que um livro só se realiza com o leitor. Cada um o lê e o percebe de um jeito diferente. Como ressaltou Schröder, nem a mesma pessoa faz a mesma leitura duas vezes.

E é por isso que tantos de nós temos livros de estimação, que são tão ou mais nossos do que dos seus próprios autores. Vale para "Cem anos de solidão", para  "Crônica de uma morte anunciada" - também do Gabo —, "Memorial do convento", de José Saramago, "Essa terra", de Antônio Torres, "Vidas secas" e "S. Bernardo", de Graciliano Ramos; "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis; "Tropical sol da Liberdade", de Ana Maria Machado; "Mar morto", de Jorge Amado; "O cobrador", de Rubem Fonseca; "Meio sol amarelo", de Chimamanda Ngozi Adichie, "Reparação", de Ian McEwan — melhor parar por aqui.

Mas vale também para "O pequeno príncipe", de Saint-Exupéry, tão estigmatizado por ser chamado de "livro das misses". Já esteve na minha lista de favoritos, perdeu lugar, a fila andou. Mas continua a ser importante, lembro de como gostei da leitura, lá na passagem da infância para a adolescência.

De alguma forma, dialoguei com todos esses livros — e com muitos e muitos outros. Conversei com eles, troquei ideias, bebi com diversos deles. Sempre que ouço falar de incêndios em apartamentos (toc, toc, toc) penso nos tantos livros que tenho em casa, de como seria impossível recuperá-los se vitimados por alguma tragédia — tenho até medo de escrever essas palavras.

E aí, volto ao clássico do Gabo (sem querer forçar intimidade, uso o apelido apenas porque seria meio ridículo chamá-lo de "Márquez"). Entendo quem prefere passar longe da série, mas, olha só: é bem legal. Dirigida por  Laura Mora e Alex Garcia Lopez, traduz de forma lírica e apaixonada o universo do autor.

Mais do que uma adaptação — palavra reducionista e limitadora —, é uma visão que parte do olhar do escritor, que narra uma versão da história por ele criada. É sempre meio complicado ver um personagem ganhar uma cara que não é aquela que imaginamos, mas aquele rosto é apenas uma possibilidade, não substitui nossos devaneios. 

É, no fundo, mais uma leitura do romance, uma obra que, assim como o livro, é recebida de maneira diferente por cada um dos espectadores, que ganha novos e outros sentidos num ciclo interminável. Fora que dá uma vontade danada de voltar ao livro, de pegar o primeiro voo para a nossa sempre querida Macondo.