Farinha pouca, meu cuscuz marroquino primeiro
Vale perguntar aos pobres argentinos se vale a pena não ter o que comer hoje para traçar um belíssimo bife de chorizo daqui a alguns anos.
Quem tanto grita por mais cortes na área social precisa responder o que fazer com os milhões de brasileiros que correm o risco de morrer de fome até que cheguemos ao paraíso da estabilidade fiscal.
É possível que os mais sensíveis do grupo balancem a cabeça, façam ar compungido e, como os franceses, falem algo como "désolé". Os mais sinceros avaliarão que o genocídio será um processo de redução de demanda, que vai pressionar menos os gastos públicos e a inflação.
De acordo com o IBGE, apesar da significativa redução da pobreza, ainda temos 9,5 milhões de miseráveis. É é provável que a maioria deles deixe de existir com o "Cortem as despesas!" gritado por nossas rainhas de Copas.
Em tese, a redução de despesas faz sentido, o problema é que não se trata de diminuir idas a restaurantes, cinemas, bares - essas providências que tomamos quando o vermelho colore nossos extratos bancários. Estamos falando em negar o direito à vida.
Sim, o corte em benefícios sociais tem capacidade de fazer com que, no futuro, até o processo de assistência aos mais pobres seja mais eficiente. Mas o problema não se resume aos famintos do futuro, mas aos de hoje. Como dizia Betinho, quem tem fome tem pressa, o bife não comido hoje não pode ser compensado com o que será devorado amanhã.
Vale perguntar aos argentinos pobres se vale a pena não ter o que comer hoje para traçar um belíssimo bife de chorizo daqui a alguns anos. É mais ou menos a mesma lógica dos terroristas que se imolam confiantes em recompensas celestes.
Chega a ser engraçado que tantos setores da economia digam que os bilionários subsídios por eles recebidos são temporários, apenas procuram compensar gargalos históricos, a concorrência internacional, os chineses, a falta de infraestrutura do país, o custo Brasil, a pandemia.
Dizem, na maior cara de pau, que no futuro tudo será estabilizado, que não haverá mais a necessidade de incentivos fiscais. Mas os tais defensores do ajuste fiscal para os outros nunca deixam de fazer lobby pesado pela renovação de seus privilégios.
Foi o que aconteceu há poucos meses com a chamada desoneração de 17 setores da economia — eufemismo para redução da contribuição previdenciária em troca de uma suposta e não efetivada manutenção do nível de emprego.
A reação da magistocracia — palavra genial criada pelo professor de direito e colunista da Folha de S.Paulo Conrado Hübner —- à proposta de limitação dos penduricalhos de setores do funcionalismo público é outro exemplo de farinha pouca, meu cuscuz marroquino primeiro.
Entidades de magistrados e de integrantes do Ministério Público reagiram de maneira dura ao projeto que faz com que teto salarial tenha um mínimo de compromisso com o significado da palavra. Além dos 60 dias de férias, querem manter o atual sistema de teto móvel — acoplado a um elevador que nunca desce, só sobe.
Não se pode descartar a possibilidade de eles imitarem a Marinha e produzirem um vídeo que mostre a vida dura dos que se dedicam a carreiras jurídicas estatais, agora ameaçados de ter contracheques limitados a R$ 44 mil. No linguajar jurídico-castrense, privilégio é o benefício concedido aos outros.
A grita de parlamentares contra a exigência de maior transparência às emendas que colocam no orçamento só faz sentido num país acostumado a tantos desvios de dinheiro: por que temem o detalhamento do que fazem com o dinheiro público?
Cabe à sociedade definir quanto quer e pode pagar aos seus funcionários. Mais: é nosso dever ético, cívico e humano não considerar normal a miséria. Não dá pra continuarmos a comer o pão que a pobreza amassa, assa e nos serve.