A queda de braço em torno das emendas entre o Congresso e o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, indica que, talvez, seja hora de parlamentares entenderem que andaram exagerando na dose.
Não é fácil para um dependente químico parar de beber, fumar ou consumir qualquer outra droga. A normalização do uso de determinadas substâncias faz com que muitas pessoas tenham dificuldade para abandonar algo que, originalmente, consumiam para dar sensação de prazer. Com o jogo, é parecido.
De um modo geral, adictos não admitem a própria dependência, alegam que param na hora que quiserem, que estão apenas se divertindo, que o incidente ocorrido na festa de fim de ano da firma foi algo isolado, que jamais voltará a acontecer.
Situações parecidas acontecem em outros campos, nem sempre nos damos conta que estamos exagerando na piada, na gozação com o colega de trabalho. Não é fácil delimitar limite. Há algumas décadas, bicheiros cariocas foram recebidos no Palácio Guanabara pelo governador Moreira Franco.
O episódio revelou que havia sido ultrapassada uma linha divisória; mesmo a sociedade que demonstrava tolerância com aqueles criminosos passou a exigir punições, que não demoraram a chegar.
A história das emendas parlamentares atua num processo semelhante. No início, não passavam de instrumentos utilizados pelo governante de plantão para comandar o processo de toma lá-dá cá. Deputados e senadores tinham o direito de colocar obras e serviços no orçamento, mas o Planalto só liberava o dinheiro para quem se comportasse bem nas votações.
Dificuldades enfrentadas por Dilma Rousseff, Michel Temer e, principalmente, Jair Bolsonaro mostraram aos parlamentares que eles podiam fazer o rabo abanar o cachorro. Como ficou evidente no caso da petista, não é nada complicado mandar um presidente impopular de volta pra casa.
O Congresso, então, colocou no Planalto a coleira que lhe apertava o pescoço, e tratou de mandar e desmandar. E tome de Proposta de Emenda à Constituição que retirava do governo boa parte do direito de definir onde colocar verbas, diminuia seu direito de governar.
Voltemos aos adictos. O Congresso se acostumou com o dinheiro fácil. Parlamentares que antes peregrinavam por ministérios pedindo verbas viram o fenômeno se inverter, ministro é que passaram a procurá-los pedindo um dinheirinho.
A pulverização de recursos favoreceu a ocorrência de malfeitos, não é fácil controlar a aplicação de milhares de obras. Em 2024, houve o empenho, reserva de dinheiro público, para 23.980 emendas, dá pra fazer festas danadas na Codevasf.
As investigações da Polícia Federal sobre a aplicação de parte dessas verbas indicam que tem muita história feia para ser contada. Mas, independentemente de casos de corrupção, as emendas, no patamar atingido entre nós, distorcem a lógica presidencialista.
Parlamentares gostam de ressaltar que cabe ao Congresso dar a palavra final sobre o orçamento. Esse princípio, porém, está ligado à definição de prioridades nacionais, de investimentos nessa ou naquela direção, de formatar grandes objetivos. Não pode ser confundida com destinação de verbas para compra de trator, construção de rampa de skate ou de reforma de um prédio público.
Assim como fez no caso de verbas para partidos e para campanhas eleitorais, o Congresso exagerou na dose das emendas, tratou de se lambuzar com o melado do dinheiro fácil e de transferência obrigatória.
A trava imposta por Dino deveria ser vista como um conselho do cara que, ao perceber que um amigo está indo ladeira abaixo, puxa conversa, bota a mão no seu ombro e mostra o tamanho da besteira que ele está fazendo. Como na velha fábula infantil, melhor não matar a galinha de ovos de ouro.