A entrega do Globo de Ouro para Fernanda Torres e o sucesso do filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles, reforçam a imagem da História, uma velhinha serelepe, lúcida, irônica, sacana, vingativa e bem-humorada. Imortal, ela não tem pressa, e sabe o que faz.
O filme, como sabemos, é baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado federal sequestrado, torturado, morto e desaparecido pela ditadura em 1971. Na época, os militares divulgaram uma versão risível, a de que Rubens Paiva, depois de detido, teria sido resgatado por organizações de esquerda.
Até hoje as Forças Armadas se recusam a colaborar para esclarecer a verdade. O relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos frisa que o Exército sequer concluiu o Inquérito Policial-Militar aberto em 1985 a pedido da Procuradoria-Geral Militar, órgão do Ministério Público Federal. Mas o MP insiste em processar os culpados, alega, com razão, que o crime de desaparecimento não prescreve nem pode ser coberto pela anistia de 1979, afinal, os corpos ainda não foram encontrados.
A resistência dos militares justifica o pé-atrás de boa parte da sociedade brasileira em relação às Forças Armadas. Como acreditar na palavra e na capacidade de instituições que sequer têm coragem de enfrentar a verdade, vista como uma espécie de inimigo, talvez o maior deles?
Na última década, a extrema direita, associada a outros setores conservadores, procurou reescrever uma história já nascida torta. Tratou de enaltecer a ditadura e seus agentes. Numa ofensa às próprias Forças Armadas e àqueles que a ela se dedicam de maneira profissional, passaram a citar como heróis homens como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador reconhecido pela Justiça.
Como considerar herói um homem que comandava estupradores, que espancava e aplicava choques elétricos em partes íntimas de corpos de seres humanos presos, nus, incapazes de se defender? Um oficial que teve seu nome exaltado no plenário da Câmara pelo então deputado Jair Bolsonaro, que ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, dedicou seu gesto a Ustra, então chamado de "pavor" da então presidente. Como achar cojaroso e digno de ser homenageado alguém que fez o que ele fez? Que Exército é esse incapaz de reconhecer os atos abjetos cometidos por Ustra e por tantos outros militares?
Mas a História, sempre ela, trata de promover seus ajustes de contas. "Ainda estou aqui" é parte deste processo. O ao mesmo tempo incisivo e delicado filme de Salles obriga muita gente ver o que não queria encarar: ditaduras prendem e arrebentam, ninguém está livre delas, nem mesmo uma família branca, de classe média alta, moradora da Zona Sul do Rio, sem qualquer envolvimento com a tentativa de derrubada violenta do regime.
O mais que merecido prêmio para Fernanda torna o filme ainda mais popular, reforça que, como disse Ulysses Guimarães, "a sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram". Eunice, a principal personagem do longa, será cada vez mais exaltada, seus filhos e netos renovarão o amor e o orgulho que sentem por ela.
Isto, diferentemente do que ocorre com os torturadores que ainda vivem e de seus descendentes, obrigados a arrastar sobrenomes que remetem à covardia e ao horror.
Bolsonaro, que, em 2014, segundo um neto de Rubens Paiva, cuspiu no busto do ex-deputado inaugurado na Câmara, agora vê o tamanho daquele que ofendeu. Ainda é obrigado a conviver com o pavor de ser condenado e preso pela Justiça.
A Dona História sabe muito bem costurar casos assim. Ela certamente ficou muito feliz com o Globo de Ouro. Viu toda a cerimônia e só não foi dormir satisfeita porque fica sempre com os olhos abertos.