Por: Fernando Molica

Meu primeiro sobrenome profissional

Michael Keaton em "O jornal", filme de Ron Howard passado numa redação de diário de Nova York | Foto: Divulgação

Meu primeiro sobrenome profissional foi "do Estadão", referência ao jornal O Estado de S.Paulo, que agora faz 150 anos. Explico: diferentemente do que ocorre com a maioria dos profissionais, sobrenome de jornalista não é aquele herdado da família, mas o que marca o local em que trabalha.

Quando telefonamos ou mandamos mensagens para alguém que não nos conhece, acrescentamos ao nosso nome, o do veículo em que estamos. E daí, tome de Fulano do Estadão, da Folha de S. Paulo, da/o Globo, da CBN, do DIA, da CNN, da Veja - já usei todos esses sobrenomes; há um ano e meio que, depois do Molica, vem a expressão "do Correio da Manhã".

Era comum até que, numa roda de jornalistas, fôssemos apresentados com nosso sobrenome profissional. Chega a ser engraçado, algo que não se repete em outras carreiras. A não ser em casos muito específicos, médicos não costumam se apresentar declinando os nomes dos hospitais ou clínicas em que trabalham. O mesmo vale para engenheiros, pedreiros, motoristas de ônibus.

Esta característica que nos faz incorporar o nome do veículo tem muito a ver com a necessidade de legitimação e de identificaçao do profissional, principalmente repórteres, aqueles chatos (sou um deles) que ligamos para pessoas que não nos conhecem e começamos a lhes fazer perguntas, algumas, bem constrangedoras: "Segundo a polícia, o senhor desviou 20 milhões de reais, isso é verdade?"

Nessas horas, é importante citar o nome do veículo, até para ao menos ampliar o leque de mães que serão xingadas pelo sujeito alvo de nossas ligações. O respaldo que nos é dado pelos jornais, sites, emissoras de rádio ou de TV também é fundamental para nossa proteção. Saber que enfrenta uma empresa/instituição e não apenas com uma pessoa física ajuda a diminuir a possibilidade do suspeito partir pra briga. 

Por mais pomposos que sejam esses sobrenomes, é preciso ter cuidado para que não achemos que eles são nossos, estão conosco apenas durante o período de trabalho para um determinado veículo. Nossa importância é sempre relativa, costuma estar ligada ao exercício profissional.

Não são poucos os casos de jornalistas que ficaram meio tontos ao descobrirem que deixaram de receber elogios e rapapés assim que saíram de determinado trabalho. O poder não tem coração, sabe a quem dirigir seus carinhos - e é bom que seja assim: com repeito, e sem amor.

A honestidade que devemos ter com todos que procuramos, gostemos ou não deles, parte do pressuposto de que não há relação de amizade entre repórter e fonte, mas de sincero e mútuo interesse.

Tudo isso é para falar de como foi importante, aos 20 anos, ser estagiário da sucursal carioca do Estadão, um jornal tão importante que recebeu de leitores o "ão" que seria incorporado ao nome pelo qual passaria a ser conhecido. Era até engraçado quando eu, cara de menino, ia ao encontro de algum entrevistado. Não foram poucos os que, espantados com uma juventude que parecia não traduzir o peso do jornal, perguntavam se eu era eu mesmo. 

Fui contratado assim que me formei, e lá se vão mais de 40 anos de revezamento de sobrenomes. As mudanças na profissão geradas principalmente pela internet, diminuíram receitas e postos de trabalho, abriram caminho para novos, importantíssimos e independentes veículos, mas também escancaram a porta do inferno das mentiras. Não é fácil competir com um mundo que oferece ao consumidor não o fato, mas a notícia que ele quer ler - mesmo que seja mentirosa.

A recente decisão de Mark Zuckerberg de mandar às favas qualquer preocupação com veracidade de fatos e respeito à dignidade de milhões de seres humanos reforça que sociedades precisam de veículos que, com todos os seus problemas, servem de referência há muitas décadas, viraram sobrenomes de tantos bons profissionais. Todos nós, leitores, ouvintes e espectadores, já ficamos irritados com veículos tradicionais. Mas, pelo menos, sabemos a quem devemos dirigir nossa bronca - e todos têm um nome a zelar.