Mais do que contra o governo, a revolta do Pix foi uma demonstração de intolerância em relação ao Estado. Boa parte da população viu na decisão da Receita uma ameaça a um suposto direito à sonegação; e não quer sustentar uma estrutura que considera corrupta e ineficiente.
A explosão nas redes sociais entrou na lista de outras que marcaram nossa história, como as revoltas da Vacina (1904) e a do Vintém (1879). Ambas motivadas pela presunção de que o governo estava se metendo demais na vida dos cidadãos.
Em 2025, houve a fake news sobre a taxação do Pix, mas isso seria facilmente desmentível. O que pegou foi a percepção de que, ao determinar que transações em moeda eletrônica também teriam que ser informadas à Receita, o velho Leão do Imposto de Renda havia afiado os dentes.
O governo poderia argumentar que a norma anterior — de 2015, cinco anos antes da criação do Pix — já previa que instituições financeiras informassem movimentações de dinheiro, o problema é que quase ninguém sabia disso. Comerciantes há tempos conheciam o risco, tanto que muitos — bares e restaurantes, principalmente — já não aceitavam Pix. Mas, para a maioria da população, a nova forma de transação era vista como algo à margem do sistema financeiro.
Como se o Pix, que tão bem se encaixou numa sociedade de relações econômicas cada vez mais informais, escapasse das malhas cada vez mais finas do sistema de arrecadação de impostos. A nova forma de fazer negócios viabilizou a vida de muita gente, jogou pra dentro do sistema bancário pessoas que não tinham cartão de crédito, que estavam com nome sujo. Foi um golaço do Banco Central, mas seria inocência pensar que não haveria VAR num jogo que movimenta tantos trilhões de reais.
Nosso sistema tributário é injusto como o país. Diferentemente de nações desenvolvidas, o Brasil concentra sua arrecadação na taxação do consumo — o que iguala ricos e pobres — e abocanha 27,5% de imposto do assalariado que recebe acima de R$ 4.664,68. Assim, o sonho da sonegação própria é mais do que compreensível. A outra alternativa para fugir das garras do fisco seria o sujeito se tornar milionário, o que não é tão simples assim.
A decadência do emprego formal tirou de milhões de cidadãos uma renda estável e benefícios como férias remuneradas, FGTS, décimo terceiro, vales alimentação e de transporte, planos de saúde. Trabalhadores foram em busca de alternativas, e a ideia de pagar imposto para sustentar a máquina estatal soa quase como um desaforo para quem se viu privado da carteira assinada.
A reação negativa de motoristas de aplicativos à proposta de regulamentação de sua atividade foi um sinal. A inclusão, no projeto, de uma contribuição previdenciária obrigatória despertou a ira da categoria, que não quis saber de dar parte de seu suado dinheiro "para o governo" — e dane-se a aposentadoria.
Mas é preciso financiar o SUS, o único plano de saúde de 75% da população. As escolas públicas atendem a cerca de 80% dos estudantes. Isso tudo — assim como salários dos policiais — é pago com nossos impostos. Saúde, educação e segurança deveriam ser bem melhores, mas seria impossível abrir mão do que temos.
O problema é que também sai dos nossos bolsos o dinheiro para emendas parlamentares, vantagens de militares, juízes e promotores. Nós é que sustentamos funcionários fantasmas, bancamos incentivos fiscais que chegam a R$ 500 bilhões por ano, subsidiamos a previdência de entidades consideradas beneficentes.
A Revolta do Pix mostrou que a questão não resume ao pagamento de impostos. O que está em jogo é a legitimidade de um Estado que ainda precisa se mostrar necessário para a maioria da população.