Por: Fernando Molica

Insistência: um mérito inegável da extrema direita

Jair Bolsonaro | Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

É provável que nem o militante mais radical do PCO ("Quem bate cartão não vota em patrão!") negue à extrema direita a qualidade de não negar suas causas, por mais absurdas, desvairadas e anticivilizatórias que sejam. Jair Bolsonaro, por exemplo, nunca negou o que pensava.

Já a esquerda, até para se viabilizar como alternativa de poder, foi, aos poucos, moderando suas propostas. Vítima de perseguição institucional no Brasil na maior parte do século XX, tratou de tentar provar que não comia criancinhas e não iria invadir apartamentos.  

A estratégia até que deu certo, como mostram as quatro vitórias consecutivas do PT. Nenhuma cobertura na Vieira Souto foi invadida, os bancos continuaram lucrativos, o agronegócio ampliou seus subsídios e sua produtividade. A pobreza diminuiu, terras indígenas foram demarcadas, a sociedade absorveu sem muitos traumas iniciativas como casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A hegemonia do pensamento progressista foi tamanha que, em 2002, os quatro principais candidatos à Presidência poderiam ser rotulados como de centro-esquerda: Lula (PT), José Serra (PSDB), Garotinho (PSB) e Ciro Gomes (PPS, partido sucessor do PCB). 

Na época, a direita quase não ousava dizer seu nome — com exceção de alguns poucos, como um tal de Jair Bolsonaro. Lobo quase solitário no Congresso, defendia a ditatura e a tortura, a violência policial, dizia que casamento só poderia ser entre homens e mulheres e que se eleito daria um golpe de Estado. Não falava tanto em religião, tema que seria depois incorporado ao seu repertório. Naquela época, apostar em sua eleição para a Presidência seria mais improvável do que ganhar uma grana hoje no jogo do tigrinho. Bolsonaro parecia condenado a padecer no baixo clero.

Mas o mundo e o Brasil mudaram: a revolução tecnológica arrasou empregos e salários, países mais avançados tiveram que reduzir direitos sociais, a imigração e a ascensão de minorias começaram a irritar muita gente, mudanças comportamentais geraram protestos. Por aqui, havia a preocupação com a violência, a velha corrupção explodiu no então novo colo petista, as redes sociais amplificam as várias queixas até então sussurradas — o jogo virou.

Na mudança, aquele deputado raivoso que comparava parentes de desaparecidos políticos a cachorros foi elevado à condição de mito, de vingador, era o cara que não tinha vergonha de falar o que estava na telha de muitos. A exemplo do que aconteceria em outros lugares, a extrema direita é que passou a encarnar a rebeldia.

Nisso, pegou a esquerda de ideias encurtadas. Derrotada em 2018, tratou de amenizar ainda mais seu discurso, abandonou pautas essenciais, abriu mão de discutir temas econômicos e de comportamento importantes, ainda que impopulares para a maioria da população, como descriminalização do aborto e de drogas.

Com medo da Faria Lima, o governo, hoje, só fala baixinho sobre taxação de grandes fortunas; dependente de um Congresso movido a emendas que dão margem a tenebrosas transações, faz o jogo do Centrão; não levanta de maneira decisiva a farra dos subsídios e incentivos fiscais, não briga com lideranças religiosas que vivem das ofertas estatais.

Pisando em ovos, trabalha no campo da mediocridade: não conquista os adversários e derruba o ânimo de aliados. Deixa com a direita a tarefa de gerar alguma utopia. Como disse o presidente do PSB, Carlos Siqueira, à coluna Correio Bastidores, política não pode abrir mão de oferecer sonhos.