Li que militares estariam chateados e constrangidos com o sucesso internacional de "Ainda estou aqui". Tomara que estejam — é um preço a pagar pela decisão, sempre renovada, de estabelecer uma cumplicidade com os que implantaram a ditadura, torturaram e mataram.
Os atuais oficiais eram adolescentes, crianças ou sequer tinham nascido durante o regime militar. Não podem ser acusados pelos atos de seus antecessores. Mas têm a responsabilidade de manter um silêncio doloso sobre o passado. Até hoje, passados mais de 60 anos do Golpe de 1964, evitam reconhecer os muitos abusos cometidos naquele período.
Quando confrontados, costumam sair pela tangente, ressaltam que setores da esquerda também cometeram crimes: assaltaram bancos, sequestraram diplomatas e aviões, mataram. Falam que havia um guerra, que os dois lados se excederam.
A tentativa de guerrilha para derrubar a ditadura e implantar o socialismo foi um erro histórico. Mas ocorreu depois que militares associados a lideranças civis destituíram o governo constitucional, cassaram mandatos, cometeram violências. Restringiram, portanto, o espaço da oposição, especialmente daquela que se colocava à esquerda.
Outro fato importante que desqualifica a categorização de guerra foi a absurda desprorporção de forças. De um lado, as Forças Armadas; do outro, grupos pequenos, mal-armados e incapazes de iniciar um projeto guerrilheiro (diferentemente do que fazem hoje organizações criminosas, os caras não chegaram a dominar sequer um metro quadrado do território nacional). Fora que cabe ao Estado respeitar princípios básicos e constitucionais.
Opositores do regime, mesmo os que atuaram de maneira pacífica, foram punidos: sequestrados, presos, torturados, mortos, condenados, exilados. Já os agentes estatais acabaram anistiados, não pagaram pelo que fizeram.
Quando confrontados com perguntas sobre a ditadura, comandantes militares tendem a falar em esquecimento, em superação do passado. Mas sabemos que na vida particular ou coletiva, o esquecimento é impossível, a memória é indissociável da experiência humana.
A superação, porém, pode e deve ser alcançada, mas, para isso, é preciso encarar os fatos pretéritos. Alemães e judeus sabem disso, tanto que não deixam falar do nazismo. A memória é fundamental para evitar também a repetição do que ocorreu. Há pouco mais de dois anos, a amnésia histórica quase nos jogou em outra aventura golpista e institucional.
O suposto incômodo que estaria sendo sentido por militares é consequência da incapacidade institucional das três forças, da Justiça e dos governos de encararem o passado. Dilma Rousseff criou a Comissão da Verdade e ganhou uma antipatia dos quartéis que colaborou muito para seu impeachment e para a adesão de tantos fardados a Jair Bolsonaro.
Ao não encararem o problema de frente, militares não se fortalecem, ao contrário, mostram-se frágeis. A história torna-se assim um fantasma pronto para aterrorizar os que, até pela profissão escolhida, deveriam demonstrar coragem.
Tornam-se assim presas fáceis para fatos que deveriam ser encarados como banais, como o lançamento de um filme como o de Walter Moreira Salles, que trata do sequestro, tortura e assassinato de um adversário da ditadura, o ex-deputado Rubens Paiva.
Há algumas poucas décadas, um explosivo brigadeiro envolvido no caso tratado no filme tentou fugir da história — saiu de seu apartamento no Rio assim que as buscas por Paiva foram retomadas. O corpo não foi encontrado, mas o tal militar nunca deixou de ser perseguido pela memória desse e outros crimes que cometera. Sua atuação nunca será esquecida.
Para o bem das Forças Armadas, que precisam ser desvinculadas do sangue derramado por ex-comandantes, militarem precisam romper com esse bicho-papão que insistem em cultivar. A história nunca vai embora, está sempre por aqui, e não pode ser desaparecida.